Neste episódio, o Surf de Mesa se debruçou sobre a resistência à igualdade de gênero no surf profissional. Nosso trio de vozes têm o falido hábito de tentar entender o que se passa nos becos escuros e vielas das internets da vida. E dessa vez, Carolina Bridi, Junior Faria e Raphael Tognini buscam analisar com dedicação os argumentos mais comuns que correm soltos por aí entre quem tenta justificar o injustificável. Afinal, se o surf dito feminino é visto como inferior, porque há de incomodar a ponto de gerar energia de combate por parte dos incautos defensores da manutenção do surf como território preferencialmente masculino?
Uns episódios atrás, comentamos a lista dos 10 maiores surfistas da história no Brasil. Publicada pelo jornal O Globo, a lista deu vantagem enorme para os nomes mais festejados do surf de competição atual, com Gabriel Medina encabeçando a lista. E, naturalmente, gerou polêmica, dada a quantidade de nomes potencialmente merecedores de figurar entre um restrito top 10. Ainda que a lista não fosse dedicada somente ao gênero masculino, nenhuma surfista conseguiu entrar no ranking formado por votos de 30 jornalistas especializados. A ausência de mulheres levou o jornal a repetir o esforço, dessa vez fazendo uma lista de gênero exclusivo. Assim nasceu o ranking das 10 maiores surfistas da história no Brasil.
As listas e suas diferenças
Ao comparar as duas listas, uma das leituras possíveis é que a feminina tem um resultado mais equilibrado em relação aos critérios. Enquanto a masculina ficou apoiada predominantemente em resultados, a feminina teve mais coerência em relação aos critérios que deveriam ser analisados pelos votantes: relevância, legado e resultados. Assim, mais mulheres relevantes em seu legado histórico entraram na lista que tem a história, e não a atualidade, como pressuposto principal, dado o título do ranking – maiores da história. Enquanto pioneiras entraram no ranking feminino, no misto os pioneiros ficaram de fora.
Também cabe destacar que, na primeira lista (mista, por definição), dos 30 jornalistas votantes, 10% eram mulheres. Enquanto na segunda, com esforço da produção jornalística, a parcela de jornalistas mulheres chegou a 40%. O que é não só sintoma como também causa da forma como o surf feito por mulheres é percebido coletivamente desde o surgimento do surf moderno. Tem mais peso quem tem mais voz. Mas independente de resultados, até porque não necessariamente refletem realidade, o episódio tornou difícil ignorar o fato de que as mulheres precisam de uma categoria própria para serem lembradas como importantes na história do esporte no país.
Igual, mas separado
Aqui entra uma das confusões comuns quando se fala em igualdade no surf. Há quem reclame da ideia de ser obrigado a ver mulheres competindo com homens. Não sabemos exatamente de onde saiu essa ideia, mas ela não é interessante para ninguém. Isso porque há uma defasagem estrutural histórica que faria com que a competição mista fosse completamente desigual. E não por incapacidade, mas por falta da estrutura completa igualitária que permitiria a ambos os gêneros estarem em nível técnico e psicológico justos para serem comparados numericamente.
Se você não aplica os mesmos recursos e incentivos às mulheres e no seu senso competitivo desde o nascimento, porque haveria de esperar que elas estivessem em igual nível técnico de performance esportiva que um homem? Ainda que não seja inédito e nem difícil encontrar na história moderna mulheres vencendo homens quando em competições mistas de surf (ou de outras modalidades), seria totalmente inglório um comparativo porque ambos simplesmente não usufruem de condições de igualdade desde a maternidade. É o mesmo que esperar que um talento masculino sem investimento em treinamento integrado tenha os mesmos resultados que teria com recursos suficientes para, não só acessar os locais de competição espalhados geograficamente, como para sustentar uma equipe que cuida de cada detalhe da sua persona competitiva. Até o mesmo sujeito, quando em condições de oportunidades diferentes, tem resultados diferentes.
Aqui, nasce o que pode ser interpretado como um dos argumentos mais contraditórios, que dá nome ao trecho seguinte:
“Cuidado com o que você deseja”
Recentemente sustentado pela revista What Youth em seu artigo Can surfing have true equality?, este argumento tem como base o fato de que a pressão para igualdade no número de eventos para ambos os gêneros pode resultar na diminuição de tempo dos eventos masculinos. É o famoso “muda o mundo aí, só não mexe no meu”. No artigo, a revista sustenta que esta é uma luta nobre, mas questiona o quão realista ela é, entregando para as mulheres a culpa do corte do evento de Mavericks nos calendários de 2019 e 2020. Explicando melhor: um grupo organizado de mulheres (antigo CEWS – Committee for Equity in Women’s Surfing, hoje Surf Equity) lutou para que eventos como esse, que dependem de aprovação local governamental, só sejam permitidos se incluírem ambos os gêneros.
Na visão defendida, a revista afirma que há evidências de que Mavericks teve restrições de permissão porque a WSL simplesmente não pôde estruturar um evento completo dos dois gêneros. O que equivale a culpabilizar a vítima. No caso, o foco do problema sai do rastro histórico de subjugação das mulheres e da incapacidade da WSL organizar um evento atendendo as exigências, e é remetido às incômodas mulheres que agora reclamam reparação.
Realista para quem?
Mas o que fica claro aqui é que homens com acesso a uma competição em determinada onda é literalmente mais importante do que as mulheres terem acesso a competir nessa mesma onda. E se alguém acha que os homens merecem mais porque chegaram antes no surf e fizeram por merecer, vale lembrar que isso não se sustenta na medida em que a história moderna foi toda construída subjugando as mulheres. Até pouco tempo atrás elas não tinham permissão, por exemplo, para a prática do futebol. Esse direito só foi assegurado em 1979, quando o Brasil já era tricampeão mundial na modalidade masculina. Esse é apenas um exemplo de uma lista longa de atrasos decorrentes do controle masculino sobre os direitos das mulheres. Portanto, para não alongar demais, fica aqui o corte ao argumento da meritocracia.
Vale lembrar que na origem do surf, nas ilhas polinésias, o surf era atividade natural de homens e mulheres. Ainda que fosse restrito à realeza e aristocracia, as mulheres tinham protagonismo, como mostram as principais lendas e mitos de que se tem registro.
Ainda que o artigo da What Youth registre em nota do editor que apoia 100% de oportunidades iguais, vale responder sua dúvida. Parece óbvio que a luta se torna menos realista quanto mais argumentos como este são usados para confundir os motivos pelos quais chegamos neste contexto. E isso nos leva a um último argumento furado:
São negócios, ´babe´!
Por fim, há quem diga que o negócio do surf só se sustenta com a competição masculina. Que a WSL, como negócio de entretenimento, certamente está onde pode ganhar mais dinheiro. E se entendesse que ganharia mais dinheiro com o surf feminino ou qualquer outro, não hesitaria em se mudar para lá. Talvez seja por isso que, mesmo no masculino, o retorno não esteja sendo suficiente para os padrões executivos. Já que há algum tempo a empresa tem demonstrado mais esforços para criar um ambiente de fácil consumo em massa do que em ser fiel ao surf e ao honroso objetivo do “que vença o melhor”.
Com o advento desgraçado de saúde pública que vivemos em 2020, este caminho aparentemente se acelerou dentro da empresa. Recentemente, o CEO Erik Logan anunciou que haverá mudanças no formato competitivo a partir de 2021. Entre incertezas e especulações, há objetivo de que o título seja sempre decidido em uma grande final, o que aparentemente tiraria o peso do mérito absoluto pelos pontos acumulados ao longo do circuito. Neste possível novo formato de decisão forçada numa final, um surfista que dominou o ranking durante a maior parte da temporada pode perder o título em uma única bateria para o 5º colocado, por exemplo.
Força de consumo
É verdade que a WSL é um negócio privado, e como tal, está direcionada à geração de lucro como qualquer outro. A questão aqui, volta ao explicado acima. Sem incentivo, não há desenvolvimento da competição feminina. E se não há tradição de competição feminina, a audiência é naturalmente menor. Isso não significa que em algum momento não se deva iniciar a reparação desta defasagem causada pelos motivos já mencionados, e que em iguais condições históricas de pressão e temperatura, a audiência não seja tão grande ou mais efetiva do que a masculina. E se podemos afirmar uma coisa com absoluta certeza é que as mulheres formam um mercado de consumo fenomenal.
Muito mais a entender
O assunto é infinito, e é certo que não esgotamos os argumentos nesse episódio. Mas no podcast ainda tem mais algumas possíveis motivações dessa incrível dificuldade em aceitar o surf das mulheres com naturalidade. Teorias que passam até pela necessidade de impressionar como ritual básico de acasalamento para, em última instância, garantir a reprodução da espécie. A real é que, ainda que seríssimo, o episódio, como sempre, rende boas risadas em meio a uma mais que necessária reflexão. Dá o play aí e vem pensar com a gente:
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