O tema mais pedido da história do Surf de Mesa vem sendo adiado há mais de dois anos dentro da história desse podcast. Isso porque Junior Faria, Carol Bridi e Rapha Tognini evitam entrar em tretas gratuitas. Localismo costuma ser um tema delicado. Por isso, o assunto vinha sendo digerido em inúmeras conversas fora do ar até que eles estivessem certos de que tinham algo relevante a acrescentar ao tema.
Isso porque entendem que o localismo, no surf ou fora dele, é basicamente um reflexo da forma como seres humanos se comportam entre si. Trata-se de um fenômeno comportamental perfeitamente compreensível. Qualquer espécie animal tem por característica básica da própria evolução o ato de proteger e defender seu território. Sabem que o que entra em questão, portanto, principalmente quando se fala em localismo no surf, são as intenções desviadas e possíveis reações de intensidade desmedida. Nesse sentido, o debate merece cabeça aberta para tratar o assunto com naturalidade. E é o que eles fazem nesse episódio.
Falar sobre localismo sem julgamentos e cancelamentos ajuda, e muito, na compreensão do que exatamente significa o conflito pelo espaço próprio e do outro. Cola o ouvido aí no seu fone, e vem ser local no Surf de Mesa.
Tranquilidade x passividade
Todos somos locais em algum lugar do mundo. A maioria costuma ser local com tranquilidade. Localismo não é algo essencialmente ruim, e aqui cabe destacar que tranquilidade é diferente de passividade. Afinal, é perfeitamente possível que uma pessoa se identifique como local sem que isso afete seu comportamento de maneira radical. A forte identificação com um local, em maioria, tem consequências mais positivas do que negativas.
A fama pesada que a palavra localismo carrega vem de uma realidade muito simples: o termo só ganha alcance quando um acontecimento negativo relacionado a ele ganha notoriedade.
Quando uma das infinitas vezes em que há resultados positivos vira notícia, o termo geralmente não é usado. Ainda que a ação em si tenha origem na mesma intenção (de proteger o local ao qual pertence), encontram-se outros termos para identificar a atitude. Quando a reação não envolve violência, é facilmente identificada a nobreza da intenção a partir de adjetivos atribuídos ao seu agente: engajado, ativista, generoso e filantrópico são alguns deles. Ignora-se que a atitude tem origem, também, no sentimento de pertencimento e proteção a determinado local.
Localismo no Hawaii
A violência faz parte da natureza humana. Esta também é a opinião de Fast Eddie, uma espécie de xerife do localismo havaiano no North Shore. Figura controversa e temida, o líder dos Black Trunks e criador da marca Da Hui, Eddie Rothman, ironicamente, é um haole. Nascido na Filadélfia, foi parar no Hawaii somente aos 13 anos de idade, depois de ser expulso de casa pela família na Califórnia. Acolhido e criado por uma família havaiana desde então, aos 27 anos criou o clube Da Hui com alguns amigos. Foram os icônicos calções pretos com uma faixa amarela e uma vermelha na lateral, usados para distingui-los dos surfistas de fora, que acabaram popularizando o grupo como Black Trunks. Mais tarde, Da Hui acabou virando a famosa marca de surfwear, calcada no conceito casca-grossa difundido pelo grupo de surfistas locais, também fãs e praticantes de artes marciais.
O clube Da Hui surgiu oficialmente em 1976, cerca de dois anos após o início dos conflitos dos surfistas locais com australianos e sul africanos que vinham chegando em números cada vez maiores para explorar as ondas do North Shore. A partir daí, uma longa história de brigas, agressões e ameaças de morte contra quem não se comportava conforme as regras locais foi se desenvolvendo ao longo da história, independente da origem do haole.
Mas a questão é que, ainda que os métodos extremos pudessem ser legalmente questionados, faziam parte de uma forte cultura local de preservação.
Essa cultura, inclusive, pode ter sido a exata razão pela qual o North Shore se mantém até hoje como o paraíso desejado por qualquer surfista, a despeito do circo armado anualmente pela indústria do surf para a realização das principais competições de surf do calendário profissional. Hoje em dia, uma nova geração, liderada por Kala Alexander, criador do grupo Wolf Pak, pretende manter a tradição iniciada pelos Da Hui.
Ação x reação
O surgimento do grupo mais temido do North Shore foi, antes de uma ação em si, uma reação. Seres humanos tentando, a seu modo natural e instintivo, resolver conflito de território. Décadas antes isso não ocorria porque não existiam hordas de fora chegando ao Hawaii. Por outro lado, séculos atrás, o Hawaii já havia sido invadido e sua população e cultura subjugadas. O que nos leva a perceber o localismo havaiano moderno como uma reação possivelmente arraigada na genética e ancestralidade local.
Afinal, a atual atribuição à palavra haole vem exatamente da chegada dos britânicos, os primeiros a aportarem nas ilhas polinésias ainda no século 18. Etimologicamente, a palavra significa “aquele que não respira”. Os nativos perceberam que os homens brancos que chegavam em suas terras não respiravam três vezes após suas rezas, conforme mandava a tradição local. Assim, haole, aquele que não respira, acabou virando sinônimo de homem branco, ou seja, o homem que veio de fora. A palavra acabou se perpetuando através da cultura surf ao longo do tempo e hoje é essencialmente usada para designar o surfista que não é local de determinada praia.
Naquele período, o surf, que era parte integral da cultura local, acabou sendo praticamente banido pelos colonizadores conservadores. Séculos mais tarde, quando o surf ganhou holofotes e passou a ser explorado comercialmente, isso não aconteceu com os havaianos como protagonistas. Seria natural que houvesse uma reação.
É importante observar que o localismo nasce do ponto de vista do colonizado. Trata-se de uma reação de alguém que é invadido e não respeitado.
Localismo e cultura local
O Hawaii é muito importante para debater o localismo, visto seu peso de representatividade dentro da cultura surf. Mas é fundamental destacar que o localismo é praticado de diferentes formas nos diferentes lugares do mundo. Algumas coisas são tratadas com naturalidade no Hawaii porque são parte da cultura específica de lá. Assim como, em qualquer outro lugar, as características do localismo serão essencialmente originadas das características culturais também locais.
É a cultura local que vai pautar o tipo de reação e preservação que se fará de determinada área.
Por isso, a primeira coisa a se considerar é a desconstrução de que o surf é algo totalmente livre. Existe uma liturgia que não pode ser ignorada.
Existem regras de comportamento estabelecidas, ainda que não estejam escritas e documentadas. Sendo o surf uma prática que depende do espaço público, e havendo mais de uma pessoa envolvida, existirão regras comportamentais proporcionando a convivência.
Já ouviu falar, por exemplo, no tribunal havaiano? Não, não estamos falando de um órgão oficial da Justiça do Estado do Hawaii. Estamos falando do quintal da casa de Fast Eddie, que ficou conhecido como tribunal havaiano, onde há hora marcada para resolver uma treta de maneira informal. Infringiu alguma das regras de respeito local? Você terá hora marcada para levar um soco, quitar sua dívida moral, e ir embora em paz. Se isso é legal ou ilegal, foge ao mérito desse texto, visto que aquele é um ritual local que existe há décadas e não se reproduz em igual teor de execução em qualquer outro ambiente do mundo.
Violência institucionalizada
Por isso, é válido observar o termo violência, entendendo que dentro dele existe um amplo campo de entendimento.
Marcar um horário para um ritual de quitação de uma dívida moral levando um soco, de forma organizada, é mais ou menos legal ou ilegal do que guardar humanos em jaulas? Quando ampliamos o entendimento de que também existe uma violência institucionalizada com fins de estabelecer os limites de convivência no reino animal humano, talvez fique mais fácil compreender todo esse debate do localismo de uma forma mais natural.
No North Shore, o localismo não existe somente dentro da água. As pessoas em suas casas colocam plaquinhas pedindo que pessoas dirijam devagar, por exemplo. É uma forma de preservar a liberdade de ter filhos brincando no quintal. E se alguém te pegar dirigindo rápido por ali, provavelmente você vai ser fechado e avisado de que se aquilo se repetir, a solução vai ser uma surra. Geralmente, por ali o primeiro contato tem um teor de notificação, da comunicação “educativa”.
Compare à notificação que um condomínio faz ao morador que extrapolou o horário da festinha no apê. Os sinais são dados, e uma multa só virá se o comportamento continuar se repetindo. No surf não existe uma convenção escrita, mas sim regras morais estabelecidas localmente.
Cuidado e pertencimento
Fundamental ainda é chamar atenção para o fato de que localismo não está vinculado apenas a reações violentas. Localismo não é só tombar carro, furar pneu e bater nas pessoas. Recentemente, a comunidade local de Lennox Head, na Austrália, se opôs a um evento mundial de surf que a WSL decidiu realizar por lá. O evento foi anunciado, mas ninguém da comunidade local de surfistas (que nesse caso é organizada) havia sido consultada. Houve oposição, com uma pauta estabelecida, e o evento foi transferido para outro lugar. Esse tipo de ação também é localismo.
Fazer limpeza de praia também é localismo, se opor ao esgoto sendo jogado na sua praia também é localismo, se opor ao turismo de multidões também é localismo. Localismo é, em definição, o cuidado e a preservação baseados em um sentimento de pertencimento.
E aqui cabe lembrar que egoísmo e preservação não são a mesma coisa.
Querer que ninguém mais surfe no seu pico porque você quer pegar todas as ondas é egoísmo. Querer que outras pessoas que surfam no seu local respeitem o pico e sua cultura é preservação.
Em definição pura, o localismo: o ato de reagir à ocupação desrespeitosa do seu ambiente. Visto que não existem leis escritas nessa defesa, o que passa a ser polêmica é a medida com que a reação ocorre.
Evitando confusão
Você já parou para pensar que, talvez, o rigor da hora marcada no tribunal havaiano, em que você sabe exatamente o que vai acontecer e porquê, seja mais seguro do que a violência desavisada e desritualizada a que estamos sujeitos em uma cultura como a brasileira, por exemplo?
Localismo, portanto, também passa pela necessidade fundamental de deixar claro o que se espera do visitante.
Ainda mais em um ambiente que ganha cada vez mais adeptos, se você é local e tem algum desavisado cagando no seu salão, avise antes de qualquer animosidade. Notifique o incômodo que está sendo causado. A maioria das pessoas vai preferir evitar o conflito, portanto, respeitar o código de comportamento. Então, para quem é local, fica uma dica: não reaja com violência ao primeiro problema verificado. Converse antes, só revide se necessário.
E se você está na condição de haole em alguma praia e sente animosidade ao seu redor, procure alguém para perguntar se está, de alguma forma, desrespeitando o pico e as pessoas que pertencem a ele. Assim, você pode ajustar seu comportamento às regras daquele ambiente, ou ficar sabendo se existe alguém ali de quem todos preferem tomar distância para evitar confusão. Porque, é claro, em qualquer lugar sempre existe um espírito de porco (ou mais) que justifica seu egoísmo sob o guarda-sol de um equivocado entendimento do que se trata, realmente, o localismo.
Em resumo, cuide do seu pico, e cuide ainda mais para não descuidar do pico dos outros.
Obrigado, de nada.
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