Corpo de surfista? Sem essa.

A Gabriella Pegorin, nutricionista e mestranda em Ciências da Saúde, está pesquisando os aspectos nutricionais no surf. Nesse episódio do VAsurfarGINA, ela dá algumas dicas e orientações sobre o que é recomendado comer antes e depois da queda para tirar o melhor proveito do surf, mas a conversa vai bem além disso. Chamei a Gabi para bater papo sobre um tema que muito me afeta e, arrisco dizer, afeta, se não todas, quase todas as mulheres. Estou falando das distorções de autoimagem e das consequências a que ficamos expostas a partir de uma relação com o corpo totalmente influenciada pelas pressões em atender os padrões.

Claro que o impacto disso passa por todos os cenários onde transitamos nossos corpos (sempre gordos demais, magros demais e aparentemente nuuunca ideais). Mas fazendo o recorte pelo cenário do surf, é inegável que esse componente estético afeta não só performances, mas inclusive o acesso.

Como a maioria das mulheres, sempre fui encanada com meu corpo. Demorei demais para me sentir apta a surfar justamente por achar que o meu não era o corpo certo para isso. Gordo demais, pensava. Conscientemente, sempre soube que era um pensamento contaminado pelo meu próprio preconceito, com um pé totalmente atolado numa espécie de ignorância consciente – aquela que gera culpa porque você sabe que está fazendo errado, só não sabe por onde começar a resolver. Por que a origem, claro, está muito além da gente.

Em voz alta, tudo isso soa ainda mais escroto. Mas sim, preciso lidar com essa paranoia cada vez que vou surfar. E duvido que a maioria das mulheres também não se julgue no espelho antes de se jogar no mar. Ou pior, se julgue tanto que acabe nem chegando até ele.

Por isso, a conversa com a Gabi começa nas síndromes relacionadas à deficiência de energia e vai parar na gordofobia no surf e nos transtornos de autoimagem e de alimentação. Algo sobre o que gente tem muito a pensar se quiser se sentir realmente livre.

Clica aqui para ouvir:

Deficiência energética

Gabriella Pegorin estuda a baixa energia disponível, fator central de duas importante síndromes do esporte: A Tríade da Mulher Atleta e a Deficiência de Energia Relativa ao Esporte (RED-S, na sigla em inglês).

A energia disponível é um conceito relativamente novo na nutrição esportiva e foi reconhecido a partir dos estudos da pesquisadora Anne Loucks em 1998, quando ela identificou que não era o estresse provocado pelo exercício que desencadeava distúrbios menstruais, mas sim a baixa disponibilidade de energia.

A energia disponível é um conceito que avalia se há energia suficiente no corpo para realização dos processos fisiológicos básicos (termorregulação, manutenção da função reprodutiva, produção hormonal, funcionamento gastrintestinal, etc.) depois de dispensado o gasto energético com exercício.

Nas síndromes mencionadas, a baixa energia disponível instalada por mais de cinco dias tende a suprimir os processos fisiológicos básicos para manter a energia exigida pelo exercício. 

Gabi explica que nosso organismo tende ao equilíbrio (o que, na fisiologia, chama-se homeostase). E que, portanto, quando é ingerida uma quantidade de calorias insuficiente para suprir as demandas do exercício mais os processos fisiológicos básicos, o corpo passa a suprimir os processos básicos que considera “menos importantes” (por exemplo, a função reprodutiva) para guardar energia para o exercício, uma vez que o corpo entende que o atleta irá, invariavelmente, treinar.

Tríade e RED-S

“No seu caso mais grave, a Tríade da Mulher Atleta vai ser então o distúrbio da função menstrual e a osteoporose.” Ocorre uma ruptura no eixo hipotálamo-hipófise-gônadas, resultando em baixa produção de estrogênio nas mulheres. Além de levar a uma condição severa de amenorreia (ausência das menstruação), como há fatores de formação óssea também dependentes de estrogênio, ocorre ainda diminuição da taxa de formação óssea, o que pode levar a um diagnóstico de osteoporose.

Existem casos de atletas com 18 a 20 anos e com parâmetros de saúde óssea de uma mulher de 50, 60 anos com osteoporose”, observa Gabriela.

Já a REDS foi descrita pela primeira vez em 2014 pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) em um documento liderado pela pesquisadora Margo Mountjoy. Começou a ser observada quando as pesquisadoras que lideram estes grupos de estudos se questionaram se os homens também estavam sendo afetados pela deficiência de energia.

Essa síndrome então amplia o entendimento dos impactos da baixa energia disponível. Além da função reprodutiva e da saúde óssea, a RED-S considera ainda os efeitos sobre a saúde cardiovascular, gastrintestinal, endócrina, além de alguns aspectos da performance. Estes últimos, ainda são pouco estudados, segundo Gabi, mas dizem respeito à queda do estoque de energia disponível também para o exercício, diminuindo concentração, coordenação e aumentando o risco de lesão. Um dos sinais, tanto em homens quanto em mulheres, é o aumento da incidência de fratura por stress, por exemplo.

Surf amador e recreativo

Atletas amadores também podem ser impactados por essas síndromes, dependendo de quanto e como comem e do quanto se dedicam aos treinos e competição amadora. Quanto ao surfista recreativo que tem o costume constante de surfar durante muitas horas, os riscos também devem ser observados. Já o praticante que treina uma hora e tem um comportamento sedentário ao longo do dia (trabalha sentado ou desenvolve tarefa que não exige esforço físico) não é um alvo da deficiência de energia.

Durante o lazer e a diversão, quando o surfista conversa com os amigos no mar, rema um pouco menos e brinca mais, a sessão terá um gasto de energia um pouco menor.

Normalmente o surfista, principalmente o recreacional, passa em torno de 44% do tempo remando e 5% do tempo pegando onda. A maior parte do tempo ele vai passar esperando a série, sentado, estacionário”.

Assim, pode ser que não tenha um gasto energético na sessão de surf tão elevado a ponto de precisar fazer uma reposição.

Gabi chama atenção para a necessidade ainda maior de observar casos na adolescência, que se tornam ainda mais alarmantes, visto que nesta fase o corpo está em processo de desenvolvimento e crescimento. Assim, ela destaca que não se deve deixar de fazer a atividade física porque “o que causa a deficiência de energia não é o volume de exercício, mas sim a falta de reposição da energia perdida”.

Sinais da deficiência

No caso das mulheres, o primeiro sinal mais comum é o distúrbio menstrual. Se a atleta relata que em seis meses menstruou de três a quatro vezes, merece ter sua condição investigada. Já as fraturas por estresse, no surf em específico é um sinal extremamente confuso de identificar se ocorreu por algum movimento desempenhado no treino ou por deficiência de energia. Mas ambos são sinais que devem sempre ser investigados, com forte orientação voltada à consciência de repor energia.

Diante da moda de cortar grupos alimentares importantes, como o carboidrato, Gabi avisa:

Não são práticas interessantes para quem está praticando esporte com intenção de performance. E mesmo o recreacional quer surfar melhor”.

Por isso, hoje em dia todas as recomendações são relacionadas à prevenção da deficiência de energia. Outro fator importante é a manter atenção aos problemas com autoimagem ou comportamento de transtorno alimentar. “Preciso investigar tudo o que está permeando os sinais de uma possível presença da deficiência de energia. Mas realmente é muito difícil de identificar”, observa Gabi.

Distúrbios de imagem e alimentação

Esse é um tema pouco pesquisado no surf. Partindo da pressão estética e do culto ao corpo, o surf acontece em um contexto que predispõe ao desenvolvimento do comer transtornado – que não fecha um diagnóstico para o transtorno alimentar, mas tem sinais do transtorno. Por exemplo, o atleta ou praticante recreacional, com objetivo de melhorar a performance, acredita que precisa fazer um controle mais rigoroso da alimentação.

“Depois de um almoço de família, o atleta se jogou em toda a comensalidade que é linda porque a comida tem essa questão social que envolve nossos encontros, memória afetiva, pessoas que a gente ama. De repente, ele se depara com aquele momento em que reflete que comeu demais, que talvez exagerou e precisa fazer algum tipo de compensação”, exemplifica Gabi. A tendência é de fazer exercício extra por punição à quantidade de calorias consumidas. Ou então, no dia seguinte, apelar para uma prática muito restritiva, com jejum ou eliminação de grupos alimentares que considera ter excedido.

“Quando começa a fazer esse tipo de compensação para ter o tipo de corpo que acredita ser importante para a performance, já está desenvolvendo um comportamento do comer transtornado. Se esse comportamento existe nos outros colegas de equipe ou é endossado pela própria equipe técnica, esse comer transtornado mantido por longo prazo pode sim desencadear transtornos alimentares”, avisa.

Vigorexia e anorexia

Apesar de existirem casos relatados de anorexia no surf, não existem dados específicos da modalidade. Mas cabe observar que, entre atletas masculinos de diferentes modalidades, o transtorno mais frequente é a vigorexia, ou seja, a busca por um corpo mais e mais forte. Isso é almejado pela própria questão de potência nas manobras, no caso do surf.

Já no caso das atletas do sexo feminino, muito além da performance, há algo extremamente violento, que são as cobranças por um corpo cheio de curvas, delicadeza e feminilidade, podendo desencadear também transtornos como anorexia e bulimia. “A anorexia é muito frequente entre mulheres em que a modalidade acaba impulsionando para a corrida pela magreza”, comenta. 

Enquanto o homem é cobrado sempre pelo corpo ideal para a modalidade, que vai mostrar performance e um vigor masculino na modalidade, para as mulheres isso se torna mais agressivo porque o padrão estético é de um corpo que não necessariamente é o ideal para o desempenho da modalidade.

No surf hoje já há compreensão de que além dos fatores técnicos, de equipamento e de potência e velocidade, para expressão de manobra é importante também ter um corpo mais forte, mais pesado. Tanto na prática masculina quanto feminina. A realidade da pressão estética, porém, não indica o mesmo caminho.

Gordofobia no surf

As pressões presentes em modalidades com forte componente estético, como é o caso do surf, impedem o acesso confortável de quem não se encaixa nos padrões do que se espera de um corpo atlético.

Gabi destaca, porém, que o corpo atlético não é um só. “A nossa ideia imagina logo um corpo tonificado, magro e forte, de musculatura aparente, que não tenha alto percentual de gordura. Nós reproduzimos essa ideia constantemente e isso vira o padrão vigente de corpo atlético. No entanto, corpos atléticos são diversos. Não existe um único corpo atlético”, afirma.

A ideia de que o corpo gordo é incapaz e não tem aptidão para realizar um exercício ou qualquer prática corporal não tem fundamento. A expectativa que as pessoas têm de um corpo gordo é de que não se alimenta bem, não pratica exercício, não se preocupa com a saúde. E abandonam toda a fundamentação científica de que a obesidade é multifatorial, e o sobrepeso nem sempre está associado a comorbidades. A expectativa de um corpo magro é estética, e nem sempre esse corpo magro vai ser saudável. Portanto, não existe nenhuma fundamentação com base na ciência de que corpo gordo não é ideal para a prática do exercício físico. Trata-se apenas de um comportamento excludente.

É muito inadequado, é errado que a gente continue a manter esse argumento de que um corpo magro é um corpo mais ágil no surf e que um corpo mais delicado nas mulheres é mais bem visto porque se o que a gente quer ver é performance, é importante esse corpo robusto. É importante ter essa massa corporal que vai afetar diretamente a expressão de manobra. Só assim a gente vai ver aquela manobra mais expressiva, mais bonita, espirrando água pra todo lado”

O corpo ideal

O corpo ideal, segundo Gabi, é aquele que tem energia para a atividade. “É o que nós temos para praticar a atividade física. Corpo ideal é o nosso, que se movimenta. E aí entra também a questão do capacitismo. Corpos com deficiência também se movimentam, são capazes de se movimentar, inclusive nas Paralimpíadas o Brasil é extremamente forte”, ressalta.

Ela cita o trabalho de Howard Schatz, que fotografou corpos atléticos de modalidades olímpicas diversas com base justamente no questionamento do corpo ideal, mostrando que o corpo atlético não é um só. No entanto, Gabi reconhece que em uma sociedade extremamente assediada pela indústria da beleza, que lucra com as inseguranças, dificilmente alguém sai ileso. Inclusive ela.

Por que meu nariz tem que ser tão pequeno, minha boca tão grande, minha cintura tão fina? Abrir espaço de diálogo é importante para que a gente comece a conversar sobre as nossas inseguranças”, afirma.

 

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Dicas antes e depois do surf

Nos esportes praticados em contato com a natureza, há expectativa de uma alimentação super saudável, com alimentos prioritariamente de origem vegetal. Mas a verdade é que isso não é necessariamente uma tendência real. É um momento que o corpo está realmente precisando fazer a reserva de energia que foi bastante usada no exercício.

Por isso, ela dá dicas do que comer antes e depois de surfar.

  • Refeições grandes, como almoço ou café da manhã reforçado, devem ser feitos pelo menos duas a três horas antes da queda para que os impactos da digestão não atrapalhem o exercício.
  • Se for possível, antes do surf opte por um lanche menor composto principalmente por fonte de carboidrato (sucos de fruta, frutas com menos fibra para evitar desconforto gastrointestinal ou pão com geleia de fruta, por exemplo).
  • Tudo depende da tolerância da pessoa e das características individuais, mas a orientação é que os lanches sejam sempre com alimentos de fácil digestão para evitar desconforto durante o treino.
  • O ideal é não treinar em jejum prolongado, de mais de 12 horas, e nem comer proteína antes do surf por conta da digestão mais complexa.
  • Depois do surf pode ser feita uma refeição completa para refazer o conteúdo de armazenamento de energia. A janela de oportunidade de captação dos nutrientes pode durar até 24 ou 48 horas. Então, não necessariamente é preciso comer logo em seguida do surf.
  • Atletas de competição devem ter orientações individualizadas e bem guiadas porque outros aspectos precisam ser avaliados.

 

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