Esse foi, até agora, o episódio mais engraçado e fora de controle desse podcast. Engraçado porque não tem como ficar séria por muito tempo numa conversa com as surfistas Bárbara Muller e Chantalla Furlanetto. E fora de controle porque é assim que a gente gosta. Encontrei as duas enquanto elas ainda estavam no meio de uma longa viagem para gravar o programa Maré das Marias, que estreia nesta quarta-feira, 12 de agosto, no Canal OFF.

Elas percorreram 4 mil quilômetros numa kombi chamada Jussara, do Sul ao Nordeste do país, para mapear a cena atual do surf feito pelas mulheres no Brasil. Quando a gente gravou esse episódio, elas já tinham passado pelo Rio Grande do Sul e Santa Catarina, e acabado de chegar em Ubatuba, no litoral norte de São Paulo. Ainda tinham pela frente Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia, Alagoas e Pernambuco. O nome provisório do programa ainda era Maré Feminina do Surf. Depois virou Maré das Marias. E a Gina, claro, também vai estar lá no programa.

Aqui nessa conversa, o assunto passou por tudo que elas estavam encontrando pelo caminho, pelo papel fundamental das amizades no surf, pelas escolhas de uma vida no surf profissional, pela lacuna de competições femininas que resultou numa crise de patrocínios, e pelas chances que buscaram e tiveram no freesurf. O papo foi cheio de risadas, cerveja e opiniões. Só ouvindo mesmo pra entender:

Maré das Marias

No programa, as duas surfistas rodam o Brasil em busca das mulheres que contribuem para o surf feminino crescer, sejam atletas, competidoras, freesurfers, fotógrafas, shapers, empresárias, jornalistas ou mulheres que se unem para aumentar cada vez mais o número de meninas na água.  “Tem muita gente inspiradora pelo caminho. Muita menina que faz muito pelo surf, pelo esporte de alguma maneira. Poder conhecer essas pessoas está servindo de inspiração”, diz Chantalla. “E muito aprendizado também”, complementa Bárbara, que diz ter vivido muito mais do que o normal durante a viagem, onde encontraram da nova geração à velha guarda. 

Chantalla observou contrastes entre as regiões. O programa contribui também no mapeamento do surf feito por mulheres no país, na medida em que dá voz a mulheres em diferentes contextos geográficos e sociais, o que faz, por exemplo, um Estado com mulheres extremamente instigadas ter somente uma grommet, enquanto outro tem um grupo de muitas promessas da nova geração.  “Vamos ver muito esse contraste de cada lugar e suas diferenças. E conhecer a força do surf em cada lugar. O objetivo é mostrar que unidas somos mais fortes”, define.

Surfistas Bárbara Muller e Chantalla Furlanetto na kombi Jussara durante gravações de Maré das Marias

Bárbara e Chantalla na kombi Jussara | Foto: Carlos Chaves/Divulgação.

As mulheres por trás do surf

Assim como esse podcast, o programa também se propõe a mostrar mulheres que estão nos bastidores dos surf. “O universo é muito amplo. Você não precisa estar na água para estar envolvida com o surf”, acrescenta. Quer um exemplo prático? A jornalista que vos escreve tem um surf bem meia boca, mas sabe surfar muito bem nos meandros analíticos do universo surfístico. Enquanto gravávamos a entrevista deste podcast, a equipe do programa captava imagens que estarão em um dos episódios que serão veiculados pelo Canal OFF. Afinal, quanto mais mulheres estiverem por trás das câmeras, mais mulheres serão retratadas com fidelidade e valorização na frente das câmeras.

Provar para conquistar. Sempre isso…

Para Chantalla, está havendo uma desconstrução do machismo, com as mulheres reivindicando seu espaço e ganhando respeito. Antes tarde do que nunca, mesmo que a realidade ainda esteja muito longe da ideal. Bárbara aponta a rotina que toda mulher enfrenta ao chegar num pico novo. Mesmo ela, surfista profissional há mais de 15 anos, só é respeitada depois de provar que sabe o que está fazendo. “Eu sofro até hoje. Sou rabeada. Você tem que mostrar que sabe surfar pra ter um lugar ali no outside. Isso é injusto”, afirma. É intimidador principalmente para as mulheres que querem aprender a surfar, e a intimidação de uma acaba se tornando a intimidação de toda uma cena.

Não precisa tratar a gente como a primeira dama dentro d´água. Só não trata diferente de como trata o teu amigo, entendeu?”

Bárbara Muller desenhando na lataria da kombi Jussara

Bárbara Muller desenha na lataria da kombi Jussara | Foto: Carlos Chaves/Divulgação.

O caminho não é natural

As duas se conheceram surfando e, em quase 20 anos de amizade, viram muita coisa mudar. Nem tudo para melhor. Chantalla lembra que as duas começaram a competir em uma época muito boa, em que o cenário do surf era muito forte. Com vários circuitos rolando, era mais fácil se imaginar vivendo do esporte. “Eu comecei numa época de muitas oportunidades no cenário competitivo. Teve uma geração que sofreu muito porque de uma hora para outra acabou tudo aquilo”, lembra. De repente, havia uma grande lacuna deixada pela falta de campeonatos.

Nesse gap que teve depois da nossa geração, as meninas não pararam de surfar, elas só não eram vistas porque não tinham oportunidade”, diz Bárbara.

Foi nesta época que muitas meninas perderam patrocínio e pararam de competir. “Tivemos grandes nomes que infelizmente pararam pela falta de oportunidade”, aponta. Enquanto os meninos têm uma direção traçada, a cena feminina é bastante truncada. A ausência de eventos não gera uma lógica de continuidade natural.

Surfista Chantalla Furlanetto desenhando na lataria da kombi Jussara para o programa Maré das Marias

Chantalla Furlanetto | Foto: Carlos Chaves/Divulgação.

Sob pressão

Chantalla observa os esforços e conquistas que têm dado ares de retomada de oportunidades no feminino, ainda que muito menores do que no masculino, o qual também está longe de viver seu melhor momento no cenário nacional. E, sabemos, é somente de um cenário nacional forte que podem sair talentos capazes de conquistar títulos mundiais. Premiações iguais entre gêneros e iniciativas esforçadas para manter vivo um circuito feminino nacional são alguns dos motivos para acreditar nessa retomada. Foi o suficiente para surgir a tendência de pais incentivando a nova geração. Era algo que antes não se via no feminino.

“É difícil ver uma família mobilizando tudo, se deslocando, por causa de uma filha surfista. A gente tinha grandes nomes, a Jaqueline Silva e a Silvana (Lima) no CT, mas apesar delas terem tido carreiras sólidas, terem ganhado seu dinheiro, não era como se via no masculino”, observa Chantalla. “Agora tem muita gente que vê um futuro ali, que dá pra mudar a vida, que dá pra acreditar”, complementa, mencionando os ares glamourosos que o surf ganhou depois que alguns poucos atletas conquistaram fama e um grande sucesso financeiro. Algo incomum no meio.

Por outro lado, ela destaca que as meninas continuam sem patrocínio no Brasil. Talvez hoje este seja um sonho mais possível do era há alguns anos para as meninas. Mas não estamos nem perto de alcançar um caminho minimamente previsível ou relativamente seguro para isso. Por isso, as duas reforçam a importância dos estudos paralelamente à potencial carreira de surfista.

Uma alternativa

Bárbara e Chantalla competiam porque é esse o caminho para iniciar uma carreira no surf profissional. Mas lembram que não é suficiente só saber surfar. “Para ser atleta, tem que ser inteligente”, afirma Bárbara. “Não é seguro. Podem acontecer lesões. São vários riscos envolvidos, além do mercado, que a gente nunca sabe o futuro”, diz Chantalla.

Pensar estrategicamente foi fundamental diante da lacuna que se abriu quando, em 2010, desapareceram os campeonatos. Na época, existia um circuito fechado, com as 16 melhores do Brasil, que simplemente parou sem dar pistas. Para elas, quem se reinventou e soube se vender, conseguiu segurar patrocínios. Foi, na realidade, a oportunidade que tiveram para migrar ao que realmente queriam – o freesurf.

Bárbara Muller deitada e Chantalla Furlanetto sentada no teto de kombi grafitada

Pela estrada durante a gravação de Maré das Marias | Foto: Bruno Tessari/Divulgação.

Carreira no freesurf

Para ser uma surfista profissional, a competição pode até não ser o único caminho, mas tende a ser o inicial. Afinal, carreira no freesurf é algo recente. “Quando a gente competia, ser freesurfer não era realidade para uma menina. Os freesurfers eram aqueles caras que só davam aéreos e manobras radicais, patrocinados pelas marcas mais loucas”, lembra Bárbara. Mesmo hoje não existem muitos atalhos para uma vida profissional no freesurf. “Você pode partir para televisão, criar alguma coisa, algum projeto, de repente uma websérie na Internet. Não é fácil fazer dinheiro entrar todo mês se você não é um competidor”, diz.

Para as duas, a lacuna de campeonatos acabou casando com a antiga vontade de viver do freesurf. “A gente sempre quis estar onde está hoje. Viajar com amigas pegando onda e conhecendo mais um monte de gente”, conta Bárbara. Chantalla lembra que, na época, o patrocinador exigia que ela competisse. Ainda que já fosse fotografada nas campanhas da marca, não existia a possibilidade de ser freesurfer enquanto as competições rolavam. Foi quando os campeonatos pararam que ela preparou um projeto para vender suas ideias com base em retorno ao patrocinador. 

“Por isso tem que ser inteligente, fazer muito material, aqui, ali, enfim. Precisa vender o retorno para eles quererem pagar. E precisa sempre se reinventar, até porque o patrocínio tem um tempo de contrato e, se não estiverem gostando do que você está fazendo e oferecendo, vão te dar tchau”, resume Bárbara.

O que importa para uma marca

Surfar bem é fundamental. Mas não é suficiente. O surfista é, por si só, uma marca, uma empresa de uma pessoa só. E os bastidores, com administração de tantas variáveis, costuma ser bem desgastante. “A maioria da minha geração tinha patrocínio. Havia um investimento. Infelizmente aconteceu a crise e a gente teve que se reinventar no mercado pra continuar vivendo desse nosso sonho”, afirma Chantalla.

Buscar uma boa imagem também é parte do negócio. Mas as duas descartam a ideia de que só continuaram com patrocínio em função da aparência. Em resumo, ensinam que, além de surfar bem, é preciso ter estratégia, construir sua imagem e saber vender seu peixe.

Bárbara e Chantalla na areia com suas pranchas de surf

Foto: Carlos Chaves/Divulgação.

A crise de patrocínios

Bárbara tem sua própria marca de biquínis, e olha para a crise atual de patrocínios por duas vias. Enquanto empresária, percebe a dificuldade que é obter receita suficiente para patrocinar uma atleta. Por outro lado, vê marcas menores fazendo grandes esforços para isso. Quanto às marcas maiores do mercado do surf, entende que é papel delas também se reinventarem para superar os tempos difíceis. “Existem algumas (marcas) que a gente sabe que poderiam apoiar, mas não apoiam”, observa.

Chantalla acredita que no que puderem economizar, as marcas vão economizar. Por outro lado, lembra que, durante um período, também viu muito surfista colocando adesivo na prancha em troca de produto, e não de salário. Isso acabou desvalorizando os atletas como um todo. Por isso, se o mercado de surfwear está passando por uma crise, vê como caminho a busca de patrocínio em marcas fora deste mercado. Principalmente as mulheres, que têm um amplo universo comercial a explorar. Ressalva, porém, que, nesse caso, mais do que nunca, é preciso saber vender. “Não é fácil chegar numa empresa de grande porte de fora do surf porque eles não falam a nossa língua”, observa.

Inteligência e estratégia

“É aí que quem é inteligente, sobrevive. Não é só surf no pé, que é super importante e a gente tem que ter. Mas só quem é inteligente sobrevive”, resume Bárbara. A vida de um atleta, de um surfista profissional, tem prazo. É uma profissão insegura, não convencional, sem carteira assinada. Por isso, mais do que saber se vender, não tem como escapar do planejamento futuro.

A Bárbara, por exemplo, mira em produtos criados com sua assinatura. É o caso da sua marca de biquínis e também da cerveja Tropikal, que criou em parceria com uma cervejaria. Ela está sempre pensando em como usar sua imagem de surfista para expandir as iniciativas e possibilidades. “A cervejaria entrou em parceria comigo por eu ser surfista. Eles não sabiam que eu era apaixonada por cerveja e tinha um milhão de ideias. Eu levei minhas ideias e projetos, e a gente fechou negócio”, conta.

Chantalla e Bárbara dividem o mesmo longboard em marola no Rio de Janeiro

Frame: Arraes Filmes.

Amizade e surf

Amigas há 16 anos, Bárbara e Chantalla se conheceram através do surf. Entre encontros e desencontros na carreira, permaneceram sempre próximas. Competiram mais no circuito catarinense, depois se encotraram em algumas baterias do brasileiro, outras do Pro Junior e do QS. Mas foi na afinidade do freesurf que a amizade se fortaleceu. “A gente nunca teve aquela atitude de cortar a outra na onda. Até hoje a gente surfa e deixa a onda pra outra. É tão natural, que eu adoro surfar com a Chantalla”, diz Bárbara. Por isso, quando a produtora Arraes Filmes pensou o projeto do programa Maré das Marias, foi natural buscá-las para o elenco.

A gente se dá bem surfando. A gente não está ali pra disputar o espaço com ninguém. Está ali pra se divertir”, define Chantalla.

 

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