Dos 7 aos 12 anos, a surfista Tainá Hinckel não só competiu nos campeonatos masculinos, como ganhou títulos e fez muito menino chorar, a ponto de ser vetada das competições a pedido dos pais da garotada, que alegavam “direitos dos meninos”. O argumento? Se ela podia competir no masculino, eles também deveriam poder competir no feminino. Isso é… Se feminino houvesse.

Foi esse tipo de situação, e o fato de ter nascido em uma família de surfistas e apaixonados pelo mar, que moldou a personalidade da atual 1ª colocada do ranking Pro Junior da WSL América do Sul. A experiência do pai, o ex-surfista profissional Carlos Kxot, assim como o suporte de patrocinadores desde o início, fez diferença nas escolhas tomadas na carreira profissional de Tainá no surf.

O fato é que agora ela não só acumula resultados, como experiência de competição em um repertório de ondas inédito para uma surfista brasileira de 17 anos. E mais que isso, tem consciência dos motivos que a fazem ocupar o espaço que ocupa e clareza suficiente para não sentir culpa ou falsa modéstia. O resultado disso é uma garota muito bem resolvida com seu potencial.

Nesta entrevista, Tainá conversou comigo durante o Oi Rio Pro 2019. Na etapa do CT em Saquarema, ela arrebentou nos trials e se classificou para o evento principal, onde competiu com as tops do CT e acabou eliminada nas oitavas de final por Carissa Moore, que terminou o ano com o título mundial feminino.

Dá o play e vem comigo e com a Tainá:

Sem barreiras de gênero

Na entrevista, Tainá tinha 16 anos, uma autoconfiança de admirar e resultados que são a prova do que acontece quando uma menina tem incentivo emocional e financeiro suficientes para desenvolver seu talento. E melhor ainda, tem condições de deixar clara a diferença que faz na vida de uma surfista profissional ter patrocinadores e suporte emocional que proporcionam esse ambiente de desenvolvimento.

É certo que o incentivo e decisões da família, que a colocou para competir nas únicas competições que existiam – as masculinas – a fizeram ignorar as barreiras de gênero. E isso, talvez, defina sua principal característica – a de não sentir culpa por ser quem é pelos resultados que conquista. Mas e quem falou em culpa? Eu. Porque sei que é comum a muitas mulheres – eu incluída – exigirem autoperfeição antes de se sentirem merecedoras. Por quê? Porque sabemos que o julgamento tende a ser mais forte ou, no mínimo, enviesado, quando se é mulher.

Um exemplo fácil, fácil é o famoso e infame: “Ela quebra, surfa igual homem”. Era para ser elogio, mas deprecia todas as pessoas que não se encaixam no gênero masculino, inclusive a pessoa supostamente elogiada. Ocupar uma posição previamente subestimada solidifica uma estrutura invisível e, por isso, difícil de quebrar internamente. Tainá deu uma rabetada nisso e se transformou numa voz forte em um cenário em transformação. Como ela mesma diz: “a evolução dos tempos”. 

Tainá Hinckel surfando em trials do CT em Saquarema

Tainá Hinckel durante trials do Oi Rio Pro 2019, em Saquarema. Foto: Raphael Tognini

Novos tempos

Tainá pegou sua primeira onda aos 6 anos. Aos 7 já estava competindo, conseguiu seu primeiro patrocínio e nunca mais parou. O amor, segundo ela, vem antes pelo mar, o que não a deixa esquecer a paixão pelo surf. Competir foi um caminho natural, já que esteve desde sempre neste ambiente, convivendo com pranchas e com tudo que estava ao redor da família de um surfista profissional. Natural da Guarda do Embaú, em Santa Catarina, quando Tainá começou não via muitas meninas surfando. A convivência e amizade, naturalmente, sempre foi com os meninos, assim como foi contra eles as primeiras baterias.

Se não existiam eventos femininos no Brasil, a ideia era não perder tempo, e a saída foi se inscrever no masculino. Assim foi dos 7 aos 12 anos. Aos 10, Tainá foi a primeira, e única menina até hoje, a vencer uma etapa do Hang Loose Surf Attack, evento paulista que já foi disputado por grandes nomes que hoje estão no circuito, como Gabriel Medina, Adriano de Souza, Filipe Toledo, e vários outros. Esse e outros títulos conquistados sobre os meninos a fizeram acumular uma base de experiência muito grande em competições. Para ela, tudo muito natural.

Tainá Hinckel surfando em Saquarema

Tainá Hinckel durante trials do Oi Rio Pro 2019, em Saquarema. Foto: Raphael Tognini

E para os meninos?

Tainá tem a melhor resposta: “Eu nunca pensei muito pelo lado dos outros, nesse sentido”. Para ela, era um treino. Entrava de igual para igual porque sempre gostou do sentimento de competir. Mas, com certeza, “é muito ruim pra eles”, ri. Entre ela e os meninos, que ainda se encontram nos bastidores das competições, virou piada. Eles até evitam tirar onda com ela porque sabem que o trunfo que Tainá usa é poderoso. “Já fiz vários meninos chorarem muito. Não ligo muito pra isso. Pra mim foi muito bom Agradeço muito a eles que, por muitos anos, me fizeram evoluir bastante. É… já fiz alguns chorarem, mas hoje é tudo amigo”, brinca.

Tainá sabe que, se não tivesse espaço e motivação para continuar, e se não contasse com todos esses eventos, títulos e derrotas na bagagem, provavelmente não estaria no nível que está hoje, o que representa, também, uma vantagem competitiva em relação às outras mulheres do circuito. “Muitas coisas eu aprendi nessa base, que hoje as meninas estão podendo ter, só que no feminino”, diz.

Enquanto o surf masculino atingiu o auge, o feminino, hoje, está em plena evolução. “As meninas podem mais. Nas manobras aéreas, de tubo, mais radicais. A gente pode”, garante. Depois do hiato nas competições femininas no Brasil, Tainá percebe o atual momento como uma crescente muito boa. “Acho que cada um tem seu nível. As mulheres têm suas limitações, e os homens têm limitações diferentes, isso é normal. Somos parecidos, mas não somos iguais. Importante é que a gente está nessa evolução”.

Sobre direitos

Tainá competia sem problemas entre os meninos até que, aos 12 nos, quando ficou em terceiro na primeira etapa de uma competição que valia um ranking importante, gerou incômodo. Na etapa seguinte, foi vetada. Os pais dos outros competidores haviam conversado com os organizadores do evento sobre “os direitos do masculino”. Se uma mulher podia competir o masculino, os garotos também deveriam poder competir nas escassas competições femininas, que a essa altura surgiam esporadicamente, sem qualquer continuidade. Esse foi o fim das vitórias de Tainá sobre os meninos.

Ao invés de esperar pelo milagre do surgimento de um circuito feminino estável no Brasil, a escolha da família e dos patrocinadores foi a de dar suporte para ela competir em eventos fora do país. Assim começou a experiência em temporadas no Hawaii, na Indonésia e vários outros lugares do mundo. Viajou muito nesse período, procurando evoluir independente dos eventos brasileiros. Ainda aos 12, viajou ao Peru para competir um Pro Junior contra a opinião geral, que achava loucura, dada a idade da surfista. Sem pressão, acabou se tornando a mais nova campeã sul-americana.

Tainá Hinckel surfando em Saquarema

Tainá Hinckel durante trials do Oi Rio Pro 2019, em Saquarema. Foto: Raphael Tognini

O que vem pela frente

Para Tainá, o que faz o mundo acordar para o surf feminino é a evolução dos tempos. “Estamos no século 21. Acho que estava na hora de todo mundo acordar, evoluir mentalmente, evoluir em todos os sentidos. As pessoas estão com a mente mais aberta, procurando coisas novas, e começaram a investir mais no surf feminino. Lógico que tem muito pra acontecer ainda. Mas as coisas estão evoluindo, estão vindo, crescendo. E daqui a alguns anos, com certeza, vamos ter um circuito mais forte e mais meninas no tour”, acredita.

Quanto a ela, o objetivo é ser campeã mundial. É seu sonho e pelo que treina todos os dias, tentando nunca pensar muito à frente. “Hoje, respondendo sinceramente, estou pensando em amanhã, e só. Quero passar minha bateria, surfar bem e, na verdade, me divertir”. Consciente de que está entrando em sua melhor fase, Tainá sabe que o segredo é conseguir transformar pressão em motivação e combustível. Tudo isso enquanto lida com as transformações da idade, novos sentimentos e mais maturidade.

E a pergunta que mais responde desde que teve a oportunidade de surfar no Surf Ranch – a piscina de Kelly Slater, talvez entregue seu segredo. “Um das experiências mais iradas, que vou levar pro resto da vida. Eu amei, mas o mar não tem igual. Porque minha paixão, antes, é o mar. Depois o surf.”

 

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