No episódio de hoje eu converso com Nuala Costa, uma mulher absolutamente consciente de si mesma e do mundo em que vivemos. Fiquei um tempo tentando definir a Nuala para escrever essa abertura, mas empaquei… Porque ela é muitas. Sim, assim como somos todas. Mas o que impressiona é Nuala ter completa consciência e acolhimento a cada uma delas que vive dentro de si. E é isso o que muitas de nós passam a vida tentando fazer: encaixar e respeitar cada uma das facetas que precisamos ter no cumprimento dos diferentes papéis exigidos de nós o tempo todo.

Nesta conversa, eu entrei com admiração pelo que já sabia sobre a Nuala, mas saí com um sentimento que não sei nem dar nome. A visão aprofundada de uma mulher que tem consciência, inclusive de se permitir ser fraca quando precisa, elevou esse episódio a uma experiência pessoal. Em um mundo em que a força é sempre destacada como um incrível e mágico poder feminino, é um alívio ouvir de uma mulher como Nuala que ela também precisa desaguar.

Ninguém é forte porque quer

Só é forte quem precisa. Nuala afirma com todas as letras que também quer poder ser fraca. E quando o lugar onde ela se sente mais segura é no mais profundo que pode entrar do oceano, isso dá a real dimensão para os outros do quanto a vida pode ser cruel em terra firme.

Nuala criou a TPM – Todas Para o Mar, projeto com uma estrutura muito bem pensada para integrar as mulheres da cidade, como ela define, e as pessoas da comunidade em um formato que permite, com muito esforço, o autofinanciamento. Porque Nuala sabe que, se depender de marcas e patrocínios, o destino dos talentos que vivem na comunidade de Maracaípe, em Pernambuco, provavelmente será o mesmo que a tornou invisível na época em que o Brasil viveu seu melhor circuito profissional de surf, muitos anos atrás.

Aqui você vai saber quem são Nuala Costa. No plural mesmo. Porque Nuala é bem mais que uma só mulher, uma só surfista, uma só mãe, uma só empreendedora social, uma só produtora de eventos, uma só cozinheira, um só coração, uma só força, um só acolhimento da própria fraqueza.  Só tem uma parte em que ela é uma só. Nuala é um só ser feminino. Individual. É uma só, infelizmente. Se o mundo fosse feito em maioria de pessoas como a Nuala, certamente seria um lugar melhor para se viver. Ouve aí o porquê:

TPM

Todas Para o Mar é um coletivo de mulheres com 13 lideranças. Nuala é uma delas, a idealizadora e criadora do projeto. “A TPM foi criada para dar rosto às mulheres invisíveis. Depois, percebemos que não só as mulheres, mas a comunidade em geral, a periferia é invisibilizada. Então a TPM começou com esse intuito e teve a necessidade da inclusão social porque as comunidades, periferias, pessoas de baixa renda precisam ter uma segunda, terceira ou quarta opção de vida”, diz. Para isso, a TPM começou seu trabalho com eventos de surf. As aulas particulares e as inscrições nos eventos realizados criam caixa para manter a estrutura que não só dá aulas de surf para as crianças da comunidade de Maracaípe, como também faz um acompanhamento familiar, social e de educação.

“Temos contato direto com as escolas, com os professores e diretores para acompanhar o desempenho. Não exigimos notas e boletins, mas sim a presença e o empenho. Também é feito o acompanhamento social. A gente vê e sabe como é cada um deles na rua, como se comportam, as pessoas que se envolvem. Procuramos ter o olhar de cuidado mesmo. E o acompanhamento familiar. Nos preocupamos em estar dentro das casas, saber como é a vida de cada uma dessas crianças. A partir desse acompanhamento familiar, existe a necessidade de inclusão e empoderamento feminino das mulheres da comunidade, que em sua maioria são mães solo, com 3 a 8 filhos, vivendo da sua própria renda. Fazemos uma feira para que essas mulheres possam vender os seus produtos e gerar renda para ter esse empoderamento. Não se pode ser forte sem ter como se sustentar e sustentar seus filhos”, define.

 

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Impacto direto

São mais de 250 pessoas impactadas diretamente em mais de quatro anos de TPM, entre crianças, mães da comunidade e mulheres que tiveram contato direto com as ações do projeto. Hoje, são 42 crianças nas aulas sociais de surf. A maioria meninas. Quando percebeu que os meninos também tinham interesse, incluiu-os nas aulas. Além de dar a mesma oportunidade aos garotos, ainda viu uma forma de ensinar como viver com o ser feminino, com o ser mulher. “Para cuidar das meninas, temos que cuidar dos meninos. Estamos tentando criar cidadãos”, afirma.

As aulas de surf com as crianças da comunidade acontecem aos finais de semana. Já o Surf Day, evento de mulheres que promove inclusão, empoderamento e fusão da comunidade com a cidade gera renda através de inscrições das mulheres da cidade em condição mais favorecidas. O evento tem yoga, aulas de surf e rodas de conversa sempre com temas feministas, de gênero, de cor, de classe, de empoderamento. “É um evento que promove uma experiência muito forte para as duas classes de mulheres”, define. O projeto realiza ainda o Maraca Surf Festival, um campeonato feminino com oito categorias que reúne mulheres do Nordeste inteiro, buscando criar uma estrutura para que todas possam competir, com inscrições sociais para que as meninas das periferias não tenham nenhum custo com inscrição, hospedagem ou alimentação.

Um polvo

Sem patrocínio, o evento é fruto do esforço das mulheres reunidas, cada uma fazendo o que sabe e pode.

Sai um evento grande, com pranchas de premiação, e isso tudo com a força braçal de mulheres. O feminino, quando se une, tem o poder de revolucionar o mundo, de criar vida, fazer vidas se moverem. E a TPM é isso”.

O projeto realiza ainda as feiras de artesanato com as mulheres da comunidade e o Inclua-se, um festival de artes como grafite e dança que integra as crianças da comunidade e artistas locais e de fora. “A TPM é um polvo. Uma cabeça grande com muitos braços. A gente não pode abraçar o mundo, mas cada um dá um pouquinho e abraçamos quem a gente consegue”.

Campanha das marisqueiras

Desde o início da pandemia, a TPM colocou no ar uma campanha de arrecadação online para dar suporte às 150 marisqueiras de Maracaípe, que já vinham tendo dificuldades desde o derramamento de óleo nas praias do Nordeste ocorrido em 2019. A pandemia agravou ainda mais a situação. Com a campanha de arrecadação, já foram entregues mais de  800 cestas básicas, produtos de higiene e limpeza para estas mulheres, muitas delas mães dos alunos.

Para manter o projeto, além da renda de inscrições dos eventos, Nuala dá aulas particulares de surf e vende comida para fora. No grupo, que tem ainda artesãs, marisqueiras e outras cozinheiras, cada uma vai doando o que pode. Nos eventos, recebem  apoio de comerciantes locais, que contribuem com alimentos, bebidas, parafinas.

Clique aqui para contribuir com a campanha das marisqueiras

 

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Patrocínios

Com a consciência de que não se faz nada sozinha, mesmo que haja união, muito amor e muita vontade, Nuala reconhece que há muitas falhas em função da situação financeira. Não é raro que projetos não saiam do papel em função da falta de dinheiro. Quando fala em patrocínio, ela avisa que, para um projeto liderado por uma mulher negra, de comunidade e nordestina, alcançar as marcas e os empresários é um caminho longo e tenebroso.

Tem que mostrar que você é muito melhor, que você é tudo muito mais. Mais forte, mais simpática, mais gentil. Tem que ter uma certa humildade, baixar a cabeça para as pessoas começarem a ver que você é uma possibilidade de divulgação. Porque, na real, é isso: você não se encaixa nos padrões de divulgação. Quase nada é pelo social, mas sim pelo capital. E talvez a liderança da TPM e as pessoas que são atingidas não sejam o padrão desse tipo de marketing que esquece a humanidade, o ser humano, as pessoas”, afirma.

 

Nada mudou

Assim, é fácil perceber que nada mudou desde que Nuala desistiu de seguir carreira no surf profissional aos 19 anos, no auge da performance. Por mais que tivesse resultados, era invisível para o mercado. Quando se viu tendo que escolher entre dormir na rua e desistir do sonho de ser a primeira mulher negra no circuito mundial, foi trabalhar em cozinha na Europa, onde a mãe e os irmãos estavam construindo a vida. Tentou ainda competir a perna europeia do WQS, mas no ano seguinte parou completamente. Depois de 15 anos, já mãe, veio ao Brasil e pretendia voltar para a Europa. Mas algo falou mais alto e ela não conseguiu mais ir embora.

“Quando cheguei em Maracaípe, vi que a situação das surfistas profissionais era praticamente a mesma que eu tinha vivido. A única diferença é que agora existe a Internet, as pessoas já não podem ser invisibilizadas. Silvaninha (Lima) chegou lá porque bateu tudo nos peitos. Silvaninha é muito arretada, é nordestina, é cearense. Então ela foi com tudo, com muita raiva, mas nem todo mundo tem essa força psicológica. As pessoas se frustram, se decepcionam. E o panorama do surf brasileiro feminino está igual há 20 anos, quando eu era competidora”, observa.

Um lugar seguro

Nascida no Rio de Janeiro, Nuala passou parte da infância no interior de São Paulo e, quando chegou em Pernambuco, aos 7 anos, o mar foi seu refúgio. “Na época eu tinha uma vida muito dura porque minha mãe era casada com um maltratador e na hora ou depois dos maus-tratos, era para lá que eu corria. Ia pra praia, ia mergulhar. De noite ficava no meio dos coqueiros. O mar sempre foi o meu escape. É muito mais que amor, é cuidado. É no mar que eu me sinto cuidada, protegida, que eu me sinto vulnerável e ao mesmo tempo a mulher mais forte do mundo. Desde criança, desde antes de eu surfar, era para o mar que eu fugia”, conta. Viu os irmãos surfando e quis surfar também.

Quando acontecer as coisas dentro de casa ou na vida, quero ir o mais longe, o mais dentro do mar possível pra poder me proteger e fugir dos monstros que a vida vai botando no caminho”.

Depois que começou, não queria mais sair. Ficava dentro d’água 8 horas seguidas. Assistia desenhos em que os personagens viviam no mar e queria aprender a não respirar. “Meu sonho era morar bem lá no fundo dos corais com os peixes e só subir na superfície pra pegar onda. Eu me sinto muito protegida dentro d’água. Se tiver outra vida, por favor, que eu nasça peixe porque o ser humano é cruel”.

 

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O surf

Nuala começou a surfar com 10 anos, mas perdeu a prancha quando aquele homem a quebrou. Foi para o bodybord, mais difícil dele quebrar. E voltou a surfar em pé justamente em uma bateria de campeonato. 

Estava Tita Tavares, sua ídola, e Alcione Silva em uma etapa do Nordestino. Precisavam de duas meninas para completar a bateria. Ela falou que ia. O pior que podia acontecer era ficar em 4º lugar, ganhar umas peças de roupa do patrocinador do evento e um troféu. Na primeira onda que remou, trouxe a memória de quando tinha surfado em pé aos 10 anos de idade e pegou uma muito boa. Ficou em 3º lugar. No dia seguinte, vendeu o bodyboard e comprou uma pranchinha.  “Minha carreira foi muito fugaz. Aprendi muito rápido, ganhei muitos campeonatos muito rápido e parei muito rápido”, lembra.

Na época em que atingiu o circuito profissional Supersurf, Nuala viveu um período frustrante porque ali sentiu a segregação. Venciam os campeonatos as surfistas que podiam viajar para todas as etapas. “Ter um título brasileiro, a gente do Nordeste não podia porque ia para uma, duas etapas. Ganhava ou ficava perto da final e depois tinha que se virar para voltar pra casa ou para ir pro outro evento. Então o Supersurf me fez parar de competir porque eu, como mulher negra, me senti totalmente invisibilizada. Ficou muito elitizado e foi muito punk pra mim”, lembra.

Força de quem precisa

Na volta ao Brasil, o chamado para ficar e tentar mudar a realidade dos novos talentos falou mais alto. “É algo espiritual, algo mais forte. Senti que tinha que ficar, não conseguia mais sair. Quando eu senti a TPM no mar, porque foi dentro do mar que senti o nome, o projeto, tudo… Aí decidi ficar. Meu filho tinha sete anos, não gostou de estar aqui no Brasil e disse que queria ir morar com o pai. Era a minha decisão, o meu chamado espiritual e eu fiquei, meu filho foi, e estou aqui nessa missão”, diz.

Hoje, briga para que exista um caminho viável de competição para os talentos do Nordeste. “Estamos preparando o futuro do surf feminino no Brasil e talvez mundial. Eu sou muito braba, da que briga, que grita, que vai, que bate a porta das coisas, que esmurra. Eu vou lutar. Toda a força que eu não tive pra lutar por mim, eu vou fazer por essas crianças. E elas vão ter sim a visibilidade, nem que seja eu a pagar ou a pedir. Não sei. Mas para que sejam grandes atletas porque a gente já tem aqui um grande futuro do surf se preparando para competir. As pessoas são tão bonitas na sua diferença. É (preciso) fazer as marcas enxergarem a beleza na diferença. No diferente deles.”

Apoie

Nuala lembra que os projetos sociais não têm como sobreviver sozinhos. É preciso que empresas e pessoas apoiem. Ela avisa ainda que tem a TPM, mas também existem outros projetos que precisam de ajuda, talvez aí perto de onde você está nesse momento. “Apoiem e surfem, porque surfar é maravilhoso”, encerra.

 

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