Provocadas pela jornalista Carolina Bridi, as surfistas Silvana Lima e Claudinha Gonçalves refletem sobre o legado que a estreia do surf nos Jogos Olímpicos pode deixar para o surf feminino. O encontro resultou em um episódio especial de podcast Jeep + Flamboiar, onde Silvana, a brasileira mais bem colocada em Tóquio, e Claudinha, comentarista de surf na transmissão dos Jogos, relembram suas trajetórias até chegarem onde estão.

Partindo dos caminhos já percorridos pelo surf feminino e da consciência sobre as barreiras que vêm sendo quebradas, falam sobre os desafios enfrentados para que as novas gerações de meninas surfistas tenham a oportunidade de alcançar o mesmo reconhecimento já conquistado no masculino.

Caminhos paralelos

Silvana e Claudinha fazem parte de uma geração de surfistas que ficou marcada pela interrupção repentina das competições femininas em meados dos anos 2000. A realidade é que, mesmo na época de ouro dos circuitos nacionais, as oportunidades de desenvolvimento no surf sempre estiveram aquém para as mulheres em relação aos homens. Nenhuma novidade, visto que os espaços de prática esportiva foram historicamente construídos como de direito predominantemente masculino. Não só no surf, mas em todas as modalidades – salvo raras exceções. 

Mas o surf pode ser considerado hoje um caso exemplar do resultado desse desequilíbrio estrutural de oportunidades entre os gêneros no esporte. A geração de surfistas conhecida mundialmente como Brazilian Storm se formou a partir das oportunidades criadas em competições de base e em um sólido circuito nacional que, ao sofrer os primeiros sintomas de crise, descartou logo de cara as competições femininas.

Silvana Lima Olimpíada Foto Pablo Jimenez ISA

Silvana Lima na estreia do surf nos Jogos Olímpicos | Foto: Pablo Jimenez/ISA

Uma geração inteira de talentos femininos que despontava como promessa sofreu o baque. Poucas foram as surfistas que conseguiram encontrar caminhos para resistir. Silvana Lima é o maior expoente dessa geração e, naquele momento, decidiu insistir rompendo barreiras pelo caminho das competições até chegar è elite do surf mundial feminino. Claudinha, por outro lado, encontrou no freesurf e na produção de mídia em TV as vias para continuar vivendo profissionalmente do surf.

Nascidas no mesmo ano, mas em contextos e regiões bem diferentes do Brasil, as duas se encontraram no início de carreira e depois viram seus caminhos seguirem por rumos distintos. Os mesmos que as colocaram, ambas aos 36 anos de idade, nas posições de destaque que ocuparam durante os dias 25 e 27 de julho desse ano histórico para o surf. O ano em que a modalidade estreou nos Jogos Olímpicos. Um novo paralelo destes caminhos aconteceu enquanto Silvana arrebentava dentro d´água em Tóquio e Claudinha era a voz feminina que explicava o surf em rede nacional.

Silvana e Claudinha na Olímpíada

Ainda que os planos e rumores existissem há tempos em função dos esforços da International Surfing Association (ISA), nenhuma das duas acreditava que o surf realmente pudesse, um dia, se tornar olímpico. Um esporte de características tão abertas, que depende de critérios subjetivos, condições específicas e atende aos caprichos da natureza, poderia se encaixar no evento esportivo mais tradicional da história da humanidade?

Para Silvana, a ficha de que poderia se tornar uma atleta olímpica caiu somente em 2018, o ano anterior àquele em que brigaria pela classificação. O sonho pela vaga veio naquele momento, mas foi ameaçado em setembro, quando lesionou o joelho direito, passou por uma cirurgia – a quarta de sua história, e por um longo processo de recuperação. “Se machucar, para o atleta, é um teste. Se não estiver com a cabeça boa, desanima”, conta.

Minha carreira foi de altos e baixos, mas (abracei) as oportunidades que tive de evoluir, recuperar, poder competir. A pessoa tem que estar muito consciente do que quer para a vida e para a carreira. Até onde Deus deixar eu competir e treinar, eu quero isso para mim.”

Depois de descartar as duas primeiras etapas do CT, correu atrás e conseguiu garantir a vaga na Olimpíada durante a última etapa do circuito mundial feminino de 2019, disputada em dezembro no Hawaii. Mas somente em 2021 sentiu que estava 100% recuperada. Quando se viu em Tóquio, visitando a Vila Olímpica e fazendo parte de um momento histórico para o surf, compreendeu o tamanho da conquista. “Foi um momento muito importante que vai ficar marcado para a vida inteira”.

Na visão de Claudinha, “foi a realização de um sonho para todos os surfistas”. A estreia do surf nos Jogos acontecer no momento em que o surf brasileiro é destaque mundial fez com que o time chegasse como um dos favoritos, tornando, em sua visão, tudo ainda mais especial.

Trouxe também uma possibilidade de sonhar para as próximas gerações. Depois de tantas rupturas, principalmente no surf feminino, ter a Silvana representando a gente é a continuação desse sonho para as próximas gerações, de que a gente pode sim ter essa chance.”

Claudinha almejou estar no espaço de comentarista do esporte que vive. Sendo ouvida por milhares de pessoas, saber comunicar o que realmente importa foi um grande desafio para o qual se preparou com dedicação. Trouxe questões que permeiam sua vida e as quais julga realmente importantes. “Falar sobre surf é muito mais do que falar de um esporte e de pontuação de ondas. Existe todo um conceito em volta do surf, principalmente como ferramenta de transformação na vida das pessoas.” Seja comentando, falando, expondo pontos importantes nos espaços que lhe são cedidos é tão importante quanto estar na água fazendo o que mais ama. “Acho importante trazer esses pontos e hoje eu me vejo nessa posição”, afirma a surfista.

As novas gerações

Se a geração delas teve a oportunidade de participar de grandes eventos brasileiros pelo menos no início de carreira, o mesmo não aconteceu com a geração seguinte e ainda não se traduz na realidade atual para as novas gerações que estão chegando.

“Como vai evoluir o surf feminino? Através do trabalho de base, das competições, através desse suporte técnico”, defende Claudinha. Sem competição, segundo ela, é impossível surgir, por exemplo, uma nova geração como a que tanto se ouve falar: Brazilian Storm. Acrescenta ainda que essa tempestade foi feito só por homens porque houve uma ruptura no meio do caminho. “A gente ficou quatro anos sem ter competição nacional, (e até hoje) nem todos os regionais têm categoria feminina. Isso é muito difícil porque é preciso incentivo”, completa.

Claudinha seguiu no caminho pelo qual as portas estavam se abrindo para ela – o da comunicação, que possibilitou trazer um pouco mais de visibilidade para o surf feminino. “Através dessas oportunidades a gente conseguiu crescer e fomentar também. Foi muito importante, mas uma coisa não substitui a outra. Isso tem que caminhar junto. Não adianta ter mídia no surf feminino, mas não ter um trabalho de base, competição e uma nova geração de competidoras”, declara. Por isso, não é possível falar sobre  surf feminino e as próximas gerações sem falar em investimento.

Mídia, a gente conseguiu um pouco mais, mas não adianta ser a mídia do sexismo. Isso não tem que existir. A competidora tem que ter condições de competir. Minimamente, ter o circuito profissional, os circuitos de base, os regionais”, define.

“Tem muito mais meninas no mar, mas se tiver campeonatos (100%) femininos, aí sim é que a gente vai ver o quanto de talento a gente tem no Brasil”, diz Silvana. Claudinha observa ainda uma movimentação das marcas para se enquadrarem em algo que está sendo exigido. “Fala-se muito em igualdade e diversidade, e as pessoas estão cobrando mais sobre isso. O surf sempre foi um esporte muito fechado (nesse sentido), principalmente no feminino porque era preciso se encaixar em um padrão de modelo. E não é isso que precisa. Se você é surfista competidora, você tem que ser uma boa surfista competidora. Ponto.”

Para ela, a nova geração que vem chegando, de repente, pegará portas mais abertas em assuntos que antes eram considerados tabu. “A nova geração não precisa desse peso. A nova geração precisa, de fato, enxergar que elas precisam ser boas atletas. E para isso, precisa ter condição”, resume.

Silvana Lima Foto Ben Reed ISA

Foto: Ben Reed/ISA

O futuro e o legado

Da inclusão do surf nos Jogos Olímpicos, segundo Claudinha, fica a mensagem de que é possível sonhar. Para ela, enxergar o surf no patamar do maior evento esportivo do mundo faz, automaticamente, o esporte crescer. Para muitas meninas, trouxe motivação, o desejo e a possibilidade de concretizar um sonho. Por isso, destaca a importância de valorizar as conquistas de Silvana Lima, a maior representante da realidade brasileira do surf feminino. Oportunidades escassas, galgar espaço todos os dias, quebrar paradigmas e viver incansáveis superações físicas e mentais. “Essa fonte de inspiração é o maior legado que a gente pode deixar”, define.

A nova geração, em suas palavras, “terá mais possibilidades porque a geração anterior batalhou muito, abriu espaço”. E isso é exatamente o caminho que levou ao momento que o surf masculino vive hoje. “(O Brazilian Storm) Só existe porque a geração antes deles cavou esse espaço, fez acontecer.” O feminino, por sua vez, vem crescendo, ocupando posições, tendo voz, falando em igualdade, trazendo o mesmo número de praticantes na Olimpíada e trazendo igualdade de premiação. E se todas essas questões que estão sendo levantadas abrem caminhos, não é demais imaginar que daqui a três, cinco, dez anos, teremos a possibilidade de uma geração de surf feminino no topo do mundo. “E quem escreveu a história? A gente sabe quem são as protagonistas”, afirma Claudinha.

O maior sonho da gente mesmo, mulher, é ver o surf feminino evoluir. Fico muito feliz de fazer um esporte que é tão querido e que dá oportunidade para muita gente, e pode dar muito mais. É isso que eu penso: Precisa só da oportunidade”, conclui Silvana.

Daqui para frente, Claudinha segue incentivando e unindo mulheres no surf feminino através da inspiração, da comunicação e de sua clínica de surf com turmas ao redor do país. Enquanto Silvana segue para as etapas do Challenger Series, buscando sua reclassificação para o WCT em 2022 e, claro, se preparando para buscar a vaga em Paris 2024. Adianta que não está em seus planos parar tão cedo. “Não custa nada eu ser um Kelly Slater da vida no Brasil, né?”, brinca. Se ele continua competindo aos 47 anos, Silvana adianta que planeja competir mundialmente até os 40, dando trabalho às meninas. E só depois, voltar de vez para Paracuru, onde estará à sua espera a casa que está terminando de construir. Outro sonho realizado. Bem de frente para a onda de Ronco do Mar, onde tudo começou.