Como quase tudo nesse animado mundo do surf, também a sua origem em águas brasileiras não deixa de carregar conflitos. Isso porque há quem, naturalmente, entenda a origem como o primeiro registro de pessoas andando sobre as ondas com uma prancha. Mas também há quem reivindique o termo “origem” como o começo de uma cultura surf no país.

Para contextualizar essas versões e, no fim, chegar a uma feliz conclusão que deixa satisfeitos todos os de boa vontade, nesse episódio do Surf de Mesa, Junior Faria, Carol BridiRapha Tognini trazem os fatos isolados para entender em que características do tempo eles se desenrolaram. E, sem puxar sardinha pra lado nenhum, identificam o imenso valor de cada momento e das iniciativas que fizeram história.

Afinal, o peso do pioneirismo não se carrega individualmente, e nada disso é uma disputa. Então dá o play aqui pra entender melhor os fatos que deram origem ao surf no Brasil.

Pioneiros do surf moderno no Brasil

Uma edição de 1933 da revista Popular Mechanics publicou o projeto da prancha original criada por Tom Blake. Thomas Rittscher, um norte-americano morando em Santos, teve acesso ao passo a passo e resolveu construir a sua própria. Ele e a irmã, Margot, estrearam a novidade, tornando-se as primeira pessoas a deslizarem em um objeto sobre as ondas.

Os amigos Osmar Gonçalves, João Roberto Suplicy Haffers (o Juá Haffers) e Silvio Manzoni, um pouco mais novos e fascinados com a ideia, pegaram gosto pela novidade e deram continuidade, ficando conhecidos como pioneiros da categoria. O resgate de Thomas e Margot como primeiros a surfar no Brasil aconteceu apenas bem mais tarde.

O grupo, reconhecido como pioneiros do surf moderno no país, era formado por pessoas com status social privilegiado e acessos a meios de informação que ainda não estavam disponíveis no Brasil. Ainda que a exatidão da data oscile, é fato que em algum momento entre 1934 e 1937, foram realizados os primeiros registros destes surfistas pegando onda em Santos com uma prancha oca de madeira. Exatamente o projeto da prancha publicado pela Popular Mechanics.

Por que surf moderno?

É importante falar em início do surf moderno porque sabemos que a história do nosso país não começou em 1.500. Os povos originários já estavam aqui há milhões de anos e ninguém pode afirmar que antes disso não existiu uma atividade como brincar em cima das ondas, ou até algo mais elaborado.

Assim, é correto falar em pioneiros do surf na década de 1930, mas é importante não ignorar que a história é contada por quem tem acessos a isso. Assim, preferimos chamar Thomas, Margot, Osmar, Juá e Silvio de pioneiros do surf moderno no Brasil.

Contextos social e histórico

Essa origem no Brasil está diretamente ligada à Tom Blake devido à publicação do passo a passo da prancha na revista. O que nos leva a uma característica interessante de identificação entre estes personagens. Eram todas pessoas já ligadas ao mar por outras atividades. Eram o que os gringos costumam chamar de watermans. Ou seja, pessoas que nadavam, velejavam, remavam, e que viram nas pranchas mais uma forma de estar no mar.

Nesse momento, da década de 30, é importante destacar que o pioneirismo foi possível também em função da realidade social em que viviam. Thomas e Margot eram de família estrangeira, o que, culturalmente, significava pelo menos duas diferenças culturais gritantes. Tanto na visão sobre o mar, que no Brasil ainda representava um ambiente menos nobre do que os centros urbanos que se formavam na sociedade pré-Segunda Guerra Mundial; quanto na presença da mulher. Os costumes estrangeiros da família também conferiam a Margot, uma mulher de atitude, autonomia mais avançada em relação aos espaços e posições que muitas das mulheres podiam ocupar na sociedade.

Depois disso, o hiato na história do surf brasileiro também reflete, em certa medida, o desenrolar da história mundial. Entre o final da década de 30 e o meio da década de 40, a guerra  refletiu em questões práticas que impactaram o desenvolvimento de muitas atividades, inclusive culturais e esportivas.

Pioneiros da cultura surf no Brasil

Daqui, pulamos ao Rio de Janeiro das décadas de 50 e 60, onde os pioneiros da cultura surf, igualmente pessoas com acessos mais amplos e privilegiados, construíram toda uma cena inspirada em uma cultura surf que também já estava mais desenvolvida no exterior.

Se na Santos da década de 30, as pessoas enxergaram mais uma forma de estar na água, no Rio da década de 60 a galera viu uma forma de aglutinação e comportamento de inspiração cultural própria do que estava avançado desenvolvimento na cena californiana. O que, diga-se de passagem, casa em total harmonia com a cultura carioca.

Afinal, não é possível falar em cultura de praia no Brasil sem falar no Rio de Janeiro. O valor dado às atividades na praia dentro da cultura carioca se iguala ao que ocorre na Califórnia. Separado, óbvio, pelos seus respectivos contextos nacionais e geográficos. Uma coletânea dos registros mais incríveis dessa fase está no livro Arpoador Surf Club, de Tito Rosenberg.

Pioneirismo e repressão

Fato é que nestes dois momentos da história, o pioneirismo ocorreu com algumas semelhanças impossíveis de ignorar:

  • Em cidades brasileiras que eram porta de entrada e saída para o mundo;
  • Trazido por pessoas com elevado poder cultural, aquisitivo e social;
  • E com a presença ativa de mulheres desde o início.

Fernanda Guerra, Maria Helena Beltrão e Heliana Oliveira foram mulheres atuantes na construção dessa cultura e na institucionalização do surf como atividade esportiva a partir da cultura surf surgida no Rio de Janeiro. Tão atuantes quanto personagens fundamentais como Arduino Colassanti, Irencyr Beltrão e Jorge Paulo Lehman.

O contexto da ditadura à época reforçou o caráter marginal e de contracultura, mas é importante destacar que a institucionalização do surf nesse ambiente se deu a partir do acesso a estruturas de pode. Afinal, o que era possível fazer para oficializar aquele comportamento aparentemente subversivo? Criavam-se associações do esporte, até mesmo para evitar prisões e abusos nos anos mais duros de repressão.

Foram muitas as primeiras vezes

A história do início do surf no Brasil se torna ainda mais interessante quando encarada como uma espécie de lupa para compreender uma história mais abrangente do contexto brasileiro.

São momentos históricos diferentes. Um tão importante quanto o outro. E, assim como não se discute o pioneirismo dos polinésios ou dos caballitos de totora, não se deveria discutir o pioneirismo de ninguém que resolveu inventar sua própria forma de viabilizar o deslizar sobre as ondas.

Olhando por esse ponto de vista, a origem do surf ocorreu muitas vezes. Em São Paulo, no Rio, em Santa Catarina, na Bahia, em Pernambuco, no Rio Grande do Sul, e por aí vai. Ele começou muitas vezes porque o mundo era outro. Se em Santos foi a primeira vez que alguém resolveu criar um objeto para ir junto com a onda, no Rio alguém pensou em fazer isso todos os dias, alastrando a cultura.

Num contexto geral, o surf começou toda vez por alguém que, no mundo inteiro, em vários lugares, se maravilhou com a ideia de que era possível ser levado pela onda. Para quem entra no mar, algo tão natural quanto firmar as pernas para começar a andar em terra firme.

 

 

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