Você também se assustou e foi tomado por um misto de indignação e absurdo quando leu manchetes por aí dando conta de que Gabriel Medina havia sido contemplado com um negócio chamado Bolsa Atleta? Sabemos que sim. Natural, visto que as manchetes hoje em dia batalham pesado na concorrência por cliques como nunca se viu na história. E absurdos são o que mais espalham links na internet. Infelizmente, o jornalismo tem dependido disso para competir com memes e mentiras (fake news) – recordistas de audiência em tempos digitais.

A realidade é que nas manchetes haviam dois componentes que, juntos, explodem aos olhos e causam o tipo de emoção automática que proporciona ou o clique para ler ou a instantânea reação, comentário ou compartilhamento (ou tudo junto ao mesmo tempo). E na maioria delas, não havia nenhuma mentira. Gabriel havia sido contemplado, e o nome do programa é Bolsa Atleta. Gabriel Medina, o surfista comercialmente mais bem sucedido da história brasileira, e o termo bolsa transformam qualquer frase em uma verdadeira granada sem pino. E os editores sabem disso. Esse é o motivo de trazerem somente Gabriel ao título da matéria (algumas ainda relacionando a bolsa às férias nas Maldivas) e não qualquer um ou todos os outros contemplados na categoria Pódio do Programa Bolsa Atleta.

Você leu tudo?

Passando da primeira barreira, que é a chamada de uma matéria, quem chegou à leitura em alguns casos também não encontrou a informação completa no resto do texto. Nem todos os veículos que deram a notícia informavam que, além de Gabriel Medina, também Ítalo Ferreira, Filipe Toledo, Silvana Lima e Tati Weston-Webb estavam contemplados na mesma lista. E isso muda bastante coisa. No mínimo, faz a pessoa se perguntar qual exatamente é o objetivo da tal “bolsa”.

Uma pulga a mais atrás do orelha faria o sujeito se questionar ainda se existem outras categorias além da noticiada. E, se existir, quem tem sido contemplado nas categorias de atletas menos famosos, qual a dinâmica para requerer o recurso e quais os critérios de seleção.

É por esse motivo que Junior Faria, Carolina BridiRaphael Tognini trouxeram o assunto nesse episódio do Surf de Mesa. Existe, sim, um grande problema por trás do tema, mas não é exatamente aquele que as manchetes pareciam berrar.

Aqui se tem um breve resumo da ópera, que não se encerra neste texto ou episódio e jamais se encerrará quando se trata de observar o que é feito do dinheiro do contribuinte para incentivar o esporte (ou os esportes) que tanto amamos assistir e nos orgulhar.

O que é o Bolsa Atleta?

Bolsa Atleta é um programa do Governo Federal que existe desde 2005 para oferecer patrocínio individual a atletas de alto rendimento com bons resultados em competições no Brasil e no mundo. A ideia é que tenham condições mínimas para se dedicarem ao treinamento de suas modalidades com objetivo de se saírem bem em suas categorias. No programa, existem as categorias Atleta de Base, Atleta Estudantil, Atleta Nacional, Atleta Internacional, Atleta Olímpico/Paralímpico e Atleta Pódio.

As recentes notícias sobre Gabriel Medina e companhia se referiam à categoria Pódio, que é a mais alta do programa Bolsa Atleta. A categoria foi criada em 2011 e passou a contemplar atletas a partir de 2013. Para inscrever projeto na intenção de obter o recurso, o atleta da categoria Pódio precisa estar entre os 20 primeiros do ranking mundial de sua modalidade e se encaixar em alguma modalidade olímpica. Isso explica porque foram estes os surfistas contemplados nessa categoria específica.

Nesse caso, você ainda pode pensar o quão fominhas eles são para buscarem recurso público quando já contam com fontes mais abundantes de verba. O famoso “mamar nas tetas do governo”. Aí, se questione: se esse dinheiro não estivesse sendo direcionado para estes atletas do surf, estariam sendo direcionados para atletas de outras categorias, igualmente consagrados? Ou para outras pastas do governo? Ou para algum cofrinho porco que viria a gerar alguma outra manchete absurda? A falta de transparência do governo como um todo surge como um entre os verdadeiros problemas.

O termo bolsa

Agora, vale focar no peso que o termo bolsa tem carregado, sem trocadilhos. Em um cenário polarizado, o termo bolsa passou a ser atrelado a populismo porque é interpretado como esmola ou “ajuda para vagabundo”, para usar os termos mais frequentes. Nesse caso, vale muito olhar para o serviço prestado pelo “bolsista”.

Por mais louco que pareça, estes surfistas (e os outros atletas) estão prestando serviços ao país e devem ser remunerados por isso. Além de vestirem uma marca que vem sofrendo uma crise de imagem global, como é o caso do Brasil, durante os Jogos Olímpicos, quando terão visibilidade do mundo, nenhum deles poderá trabalhar pela imagem dos seus patrocinadores comerciais. Adeus adesivos nas pranchas, entrevistas com boné e camiseta da marca, óculos pendurado na gola, ou posts com um golinho de refri para refrescar antes de dizer as primeiras palavras.

Ou seja, se ele será obrigado a deixar o patrocinador no vácuo durante pelo menos um mês dos milionários contratos firmados com as marcas que os sustentam, é preciso que recebam por isso. Nesse caso, analisando bem, o valor da Bolsa Pódio provavelmente está aquém do que o atleta abriria mão de ganhar comercialmente em um único mês. Mas, independente disso, porque tem quem evoque ainda o patriotismo de uma poliana, existe outro ponto de vista: o serviço que está sendo prestado diretamente a você, contribuinte.

O que você está ganhando

Estes atletas também estão prestando um serviço quando, ao te dar orgulho de vê-lo chegar ao topo, estão elevando a sua própria auto-estima, a auto-estima do brasileiro. Você fica feliz quando vê a vitória de alguém que te representa, de alguém com quem você se identifica, certo? Então, pense que a “bolsa” não é uma ajuda, mas sim o pagamento por essa felicidade que te faz sentir parte de um país do qual possa se orgulhar – pelo menos em partes.

Nossa dica de indignação aqui é observar que um povo feliz reclama menos. Você já deve ter ouvido que futebol é o ópio do povo, né? Aplique ao surf. Aí faz parte da tua consciência. Orgulhe-se do brasileiro, fique feliz em ser um quando o ídolo vence, mas separe as coisas e entenda que não foram R$ 180 mil (R$15 mil por mês) pagos pelo governo que o levaram ao topo.

Os valores

E, assim, chegamos ao tópico mais relevante dessa conversa. Os valores recebidos mensalmente pelos contemplados em todas as categorias do Bolsa Atleta durante o período de vigência:

  • Atleta de Base: R$ 370
  • Estudantil: R$ 370
  • Nacional: R$ 925
  • Internacional: R$ 1.850
  • Olímpico/Paralímpico: R$ 3.100
  • Pódio: R$ 5 mil a R$ 15 mil

Aqui sim temos o verdadeiro problema por trás das notícias. Você sabe quanto custa ser um atleta de final de semana, certo? Agora imagine que você faz só isso da vida e é de onde você tira não só seu sustento como o sustento das estruturas que transformam grandes talentos em verdadeiros campeões. Você não deveria achar ruim que Gabriel Medina, Ítalo Ferreira e Silvana Lima estejam recebendo R$ 15 mil e Tati Weston-Webb e Filipe Toledo R$ 11 mil por mês do governo. Você poderia achar ruim que eles estejam recebendo só esse valor quando a estrutura individual é infinitamente maior para estar onde estão. E, mais ainda, você deve focar mesmo é nos R$ 370 a R$ 3.100 das outras categorias.

Aqui, sim, vale a indignação. A gente sabe que o investimento para competir e dar resultados é infinitamente maior do que qualquer uma dessas faixas de valores. É só pensar em quanto custa a sua queda semanal no quintal de casa e tentar imaginar o que seria preciso para se tornar o melhor surfista entre os melhores.

Não é novidade

Vale destacar ainda que a contemplação dos surfistas famosos ocorre desde dezembro de 2019. A primeira portaria com seus nomes na categoria Pódio data de 29 de novembro de 2019. A nova portaria, de 9 de outubro de 2020, estaria, então, apenas dando sequência ao benefício. A única diferença é que Filipe Toledo teve seu recurso reduzido de R$ 15 mil para R$ 11 mil. Todos os outros permaneceram da mesma forma.

Para obter o recurso, os atletas apresentam projetos do que realizarão durante o período em que serão contemplados. E isso também passa pelas confederações de cada modalidade antes de seguir para seleção, ou não, no programa. Será que todos os outros atletas souberam da disponibilidade destes recursos e enviaram também seus planos esportivos?

Mais surfistas contemplados

Cabe ainda registrar que dentro das outras categorias o surf também tem atletas contemplados. Eles não foram notícia porque não dariam manchetes chamativas.

Em dezembro de 2019 foram contemplados pelos menos outros 11 surfistas de diferentes regiões do país. Já as categorias específicas em que cada um foi contemplado e os critérios considerados na aprovação dos planos esportivos, ou mesmo quantos se inscreveram, são informações que não ficam claras nas documentações disponíveis no site oficial do governo.

Em resumo, ao invés de ser tomado pela cólera dos grandes receberem um recurso ao qual têm direito, concentre em se indignar com o abismo que existe entre o valor oferecido a cada uma das categorias do Bolsa Atleta e o custo real de formar, desde a base, atletas brasileiros vencedores. Por incrível que pareça, esporte é o trabalho deles. E levar o corpo e a mente além dos limites para sobressair entre tantos talentos pode ser tão ou mais penoso do que passar o dia sentado num escritório.

Você gostaria de se mais bem remunerado e não negaria algo que te é oferecido por direito, certo? Somos totalmente a favor de reclamar. Mas da coisa certa. O problema é mais complexo do que parece.

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