Que o microcosmo do surf é uma amostra do macrocosmo social em que a gente vive, eu já me convenci faz tempo. Que os reflexos do que acontece nas relações sociais são replicados fidedignamente na arrebentação, que se torna tão mais difícil de varar quanto mais conservador é o crowd, também já não é novidade para muita gente.

Por isso, na estreia da 2ª temporada do podcast VAsurfarGINA, a conversa vai direto para as questões LGBTQ+: o exato ponto em que, ao que tudo indica, a cultura surf consegue ser ainda mais atrasada do que o contexto macro da nossa sociedade.

Nesse episódio, eu converso com Marta Dalla Chiesa, realizadora do Gay Surf Brazil, não só para saber mais sobre o surf camp que reúne uma galera de diversos países em uma semana no Sul do Brasil, como para trazer às claras como o surf consegue ser um ambiente tão tacanho quando se trata das liberdades de orientação sexual e identidade de gênero.

De livre, essa cultura que tanto se orgulha da liberdade, tem é muito pouco… Duvida? Então tente responder por que exatamente conhecemos tão poucos surfistas homossexuais que tenham tranquilidade para serem como são, ou para abordar o assunto abertamente sem medo de sofrer consequências desastrosas em suas vidas públicas e carreiras. Tenho certeza de que lá no fundo já tem gente pensando: não, mas a Keala Kenelly… Não, mas a Tyler Wright… Não, mas a Silvana Lima…

E aí cabe a grande dúvida: de quem é exatamente a responsabilidade sobre esse despertar cultural dentro do surf? É de quem precisa se expor, arriscando reações extremas em um contexto já opressor? Ou é de todo surfista a responsabilidade de mostrar que está pronto para uma cultura surf livre de verdade?

Vamos lá para essa conversa fundamental, que a Marta tem muita coisa pra contar. Dá o play aqui:

A Marta e o surf

Marta nasceu na serra gaúcha e, desde criança, acumulava vontade de surfar. Frequentava a praia uma vez por ano, e naqueles anos 70, lembra que pouco se surfava por lá. Mesmo assim, aquela brincadeira com as pranchas de isopor na arrebentação durante as férias de verão guardou ali dentro um desejo insistente de surfar, que só foi realizado bem mais tarde. Depois de adulta, fez uma aula esporádica em Santa Catarina, outra tempos depois quando já estava morando na Inglaterra. Mas foi quando voltou ao Brazil para morar em Florianópolis, é que o surf entrou definitivamente na sua vida.

O desejo era antigo, mas a realização rolou mesmo só depois dos 40 anos. Inicialmente, nas aulas, sentiu um ambiente de estímulo e incentivo constantes. Depois, quando começou a frequentar o lineup sozinha, sendo adulta e ainda iniciante, percebeu que o ambiente já não era o mais receptivo. “Tudo que fica fora do padrão, as pessoas já te olham meio estranho”. A realidade é que Marta se sentia tão realizada com cada experiência na água, que pouco se importava com as pessoas ao redor.

Marta e a esposa são donas da Brazil Ecojourneys, uma agência de viagens para o público mainstream que, desde o início, fez questão de se declarar gay-friendly. Ao voltar da Inglaterra, já com outras perspectivas de mundo, criou a agência com foco em clientes estrangeiros que queriam visitar o Brasil. Independente se a maioria do clientes seriam ou não LGBTQ+, a intenção foi criar um ambiente perceptivelmente amigável. Como ela já vinha curtindo pessoalmente o surf, acabou incluindo a experiência em escolas de surf de Florianópolis em um dos pacotes turísticos da agência. Só depois é que surgiu a ideia de um pacote específico para a comunidade LGBTQ+.

Marta Dalla Chiesa surfando

Foto: Arquivo Brazil Ecojourneys

Gay Surf Brazil

Em 2013, quando a Brazil Ecojourneys já tinha uns 10 anos de existência, Marta recebeu a ligação de Thomas Castet, produtor do filme Out in the Line Up, documentário que se tornou um marco ao discutir a homofobia no surf. Castet tinha tentado gravar com surfistas gays brasileiros, mas ninguém havia aceitado aparecer em frente às câmeras. Até então, Marta nunca tinha observado qualquer discriminação relacionada especificamente ao fato de ser lésbica.

Talvez por ser mulher e por ser mais velha, recebia olhares estranhos. Mas nunca tinha pensado em homofobia. Achei que o surf era um lugar relax, uma cultura aberta, mas vi que a realidade era bem diferente. Eu notava todo o preconceito com as mulheres, o sexismo, o machismo, mas não tinha me tocado que também era uma cultura homofóbica.”

Neste primeiro contato com Castet, dono da GaySurfers.net, soube que o público brasileiro era um dos maiores dentro da plataforma. Austrália, Brasil e Estados Unidos eram a origem da maioria dos acessos ao site, uma espécie de rede social para surfistas gays. Estranho era o fato de que nenhum brasileiro aceitou conversar e aparecer no filme. Mas, independente disso, em função do grande público, ele pensava em realizar um evento no Brasil. Pesquisando na internet, encontrou a Brazil Ecojourneys, que já tinha surf em um de seus pacotes e se declarava gay-friendly. Foi assim que chegou até Marta.

Dessa conversa, surgiu a parceria para promover a 1ª edição do Gay Surf Brazil, em outubro de 2013. GaySurfers.net entrou com a divulgação e Brazil Ecojourneys com a organização do evento. Assim, a comissão de Castet no lucro obtido com o evento acabou sendo destinada à finalização do documentário. Gay Surf Brazil já nasceu, portanto, contribuindo para a realização do filme e para a ampliação do debate fundamental sobre a homofobia no surf.

Homofobia no Brasil

Para Marta, o fato de nenhum brasileiro ter aceitado aparecer no filme faz crer que a homofobia no Brasil é pior. Na realidade, ela acrescenta que o machismo no surf brasileiro é maior.

Primeiro, ficou surpresa em saber que nunca havia se dado conta que haviam tantos surfistas gays no Brasil. E, que, mais do que isso, não os tivesse encontrado ou visto espalhados pelo mar. Isso a fez entender que quem surfava e era gay, se mantinha totalmente dentro do armário, pelo menos enquanto estava no seu ambiente de surf. Uma consequência óbvia em um ambiente que se mostra mais homofóbico e machista do que outros. Marta reforçou a tese quando viu, por exemplo, terríveis comentários de grande parte do público nas tímidas tentativas de abordagem do tema por pelas mídias especializadas.

Sair do armário é um ato diário

Todo mundo que passa pela necessidade de sair do armário sabe que essa é uma ação contínua. Ao entrar em um novo grupo social, o tema sempre volta a surgir. A não ser diante de um homem mais afeminado ou de uma mulher mais masculinizada, é comum que se atribua a heteronormatividade ao outro. Ou seja, sempre que há o papel de gênero conformado (ou seja, dentro das ideias tradicionais associadas à masculinidade ou feminilidade), acaba-se sendo assumido pelo interlocutor como hétero. Mas a realidade passa muito longe dos estereótipos, o que faz com que, dia após dia, se apresente uma nova situação onde o ato de sair do armário se repete.

Um exemplo é o clássico “seu namorado surfa também surfa?” para as mulheres e “sua namorada também surfa?” para os homens. A resposta da Marta é sempre: “Não, minha esposa não surfa”. Assim, o ato de deixar claro ao interlocutor que o que ele assumiu como sendo ela não a representa, ocorre inúmeras vezes ao longo da vida.

Por outro lado, quem não tem esse papel de gênero tão definido – e são muitos os casos nos eventos do Gay Surf Brasil -, normalmente não têm coragem para começar a surfar. “Um gay afeminado vai ser discriminado em algum momento dentro da água, isso se não apanhar em algum lugar”, diz Marta.

Sair do armário, para alguns, é opção. Mas para outros não porque está na cara e no jeito. Em um mundo de papéis de gênero tão estereotipados, se você está fora do padrão, você tem que sair (do armário) de qualquer forma”, observa.

Em resumo, a verdade é que, no outside ou na vida, quem representa o papel de gênero heteronormativo, consegue passar despercebido. Assim, a realidade não é que gays não surfam, mas sim que a maioria das pessoas que surfam e que são gays se escondem no reforço do seu papel de gênero. “Ele passa batido e pronto”, resume Marta.

Representatividade

De um tempo para cá, uma nova leva de pessoas tem se dedicado à tese de que todo mundo é igual, e que, sendo assim, qualquer discriminação, seja ela de que origem for, deve ser jogada de lado ao invés de ressaltada como forma de protesto para promover mudanças culturais. A realidade, porém, passa longe do conforto de quem não sofre as consequências do preconceito diretamente.

Todo mundo é igual se ninguém perceber que você é gay. Se estiver dentro do padrão. Se (o surfista) for mais afeminado, não vai ser tão tranquilo assim”, avisa Marta.

Imagine-se em uma roda de amigos surfistas em que o assunto são os planos do final de semana, do passeio com o namorado, a namorada. Se alguém precisa subtrair parte de quem é da conversa, é impossível sentir-se integrado. Assim, a necessidade de falar é simplesmente a necessidade de ser inteiro, de ser verdadeiro em relação à própria vida. Imagine um atleta que precisa esconder sua orientação sexual por medo de perder o patrocínio. Sem poder ser verdadeiro, ele estará sempre com um pé atrás sobre o que e quem é, o que acaba se transformando em uma homofobia internalizada que certamente vai prejudicá-lo em algum ponto.

Então, para quem questiona essa necessidade, cabe dizer que ela só não existirá se o ambiente se transformar em um verdadeiro lugar onde isso não causa diferença nas reações. Quando a sociedade chegar a esse entendimento de forma integral, aí sim, sairá dos ombros do LGBTQ+ o peso do esforço de sair do armário e se mostrar. “Não deveria ser assim. Mas isso só vai acontecer quando ele estiver vivendo as mesmas condições de todos os outros. Ou seja, quando isso realmente não interessar, não importar, e não for nenhum problema para ninguém”.

Estamos evoluindo?

Em seis edições do Gay Surf Brazil, Marta sente que o ambiente tem se tornado ano a ano mais confortável e receptivo. Nunca houve nenhum incidente preconceituoso durante os eventos, mas ela tem percebido que a comunidade da Praia do Rosa curte e até espera o movimento todo ano. No surf em geral, também sente que há avanços. Até mesmo em função da visibilidade de algumas surfistas profissionais que têm falado abertamente sobre o assunto.

Ela cita recentes momentos importantes que contribuem para essa visão. Como a equiparação das premiações entre as categorias feminina e masculina pela WSL, e o marcante discurso de Keala Kennelly ao receber o troféu de campeã do Big Wave Tour durante o 2019 WSL Awards:

O fundo machista da homofobia

“Acho que a grande questão do machismo está sendo combatida e, com isso, vai ser combatida a homofobia também”. Para Marta, muito da homofobia tem a ver com a associação dos gays à feminilidade. O que a faz crer que, na realidade, o fundo de todo esse preconceito é contra a mulher.

Se é gay, é menos homem. Essa é a questão: achar que a água não é lugar para ele porque ele é menos homem. No fundo, é uma questão de misoginia e machismo”.

Por isso, Marta vê o cenário evoluir quando a maior organização do esporte anuncia premiações iguais. “A equidade está longe de chegar aos patrocínios, mas já está presente nas premiações e acho que isso se reflete no resto. Quando se começa a fazer esse movimento e discutir isso, é porque há evolução.”

Nos últimos anos, também tem percebido a mídia publicando matérias sobre esses assuntos, a exemplo da última edição da revista Surfer, que abordou o surf queer. Discutir o assunto também traz a tona o pior das pessoas, como se vê em comentários nada animadores sobre essa própria matéria na Surfer ou dos comentários à exibição do Out In the Line Up pelo Canal OFF, por exemplo. “Sempre tem algumas pessoas que continuam assim e, no fundo, algum dia vão se tornar ridículas”.

De quem é a responsabilidade?

Talvez por terem menos a perder em algumas situações ou porque são mais corajosas, as mulheres têm se colocado mais nas questões LGBTQ+ dentro do surf. “A questão de patrocínios e oportunidades já é completamente desigual. Então, as mulheres que se assumiram talvez entendam que já não tem tanto o que perder”, cogita Marta.

Talvez por isso surfistas profissionais homens tenham mais dificuldade. Quando se representa a heteronormatividade dentro do papel masculino, há muito mais a se perder em relação à carreira profissional. É importante também lembrar ainda que as surfistas que saíram em defesa de suas posições talvez façam parte daquele grupo de pessoas que não tiveram a opção de se manterem no armário, como descreveu Marta. Obviamente, podem haver mulheres que estão cumprindo seu papel de gênero em compromissos com patrocinadores e que igualmente não se sentem seguras para falar abertamente sobre si por inteiro.

Assim, é inevitável trazer à tona o fato de que tornar a cultura surf realmente livre é uma responsabilidade de todo surfista, mas principalmente daqueles que se encaixam nos padrões e estereótipos estabelecidos. É responsabilidade de todo surfista tornar o ambiente do surf receptivo a todas, realmente todas, as liberdades pessoais.

Gay Surf Brazil em 2021

Em 2021 o Gay Surf Brazil vai rolar de 13 a 20 de março, na Praia do Rosa, em Santa Catarina. As inscrições estão abertas.

O surf camp é uma semana com programação voltada às atividades relacionadas ao surf com objetivo de atender do nível iniciante ao intermediário e avançado. Clínicas de surf, sessões fotografadas e filmadas, análise das imagens para aprimoramento da performance, yoga e fitness, surfari para conhecer as praia da região e reuniões sociais são algumas das atividades. Trata-se de uma surf trip voltada ao público LGBTQ+ de todas as idades e níveis de surf, aliados, amigos, família. “Todos são bem-vindos, desde que sejam pessoas respeitosas e amigáveis”, define Marta. É uma semana de férias em um ambiente especial pelo senso de comunidade e acolhimento que proporciona. Para se inscrever, visite a página do Gay Surf Brazil no Instagram ou no site da Brazil Ecojourneys.

 

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