Este episódio do Surf de Mesa é uma verdadeira aula sobre o panorama que permitiu ao surf brasileiro atingir o nível de reconhecimento e resultado mundial que tem hoje. Uma aula que passa por todas as pontas e personagens envolvidos no caminho que conduziu a atual geração ao status atual. Sobre todas as pontas que orbitam ao redor da manobra perfeita. Todas as pontas interligadas e invisíveis aos frames que formam a imagem perfeita da performance que está nos pés dos grandes nomes brasileiros que hoje dominam o circuito mundial.

O técnico, manager e marketing esportivo Luiz Pinga dá uma visão clara sobre o que nos trouxe até aqui e o que pode nos tirar desse lugar se não houver esforço a tempo de recuperar a lacuna já formada entre gerações. Do sacrifício das gerações anteriores, da construção de um mercado, da vanguarda em meio a uma história pouco divulgada, do papel da mídia, da responsabilidade das marcas, da necessidade de cuidar internamente do segmento para sustentar o cenário expandido. Uma engrenagem que só não emperra se todas as peças estiverem devidamente lubrificadas.

O gap já existe, o mea culpa está aqui em uma voz forte que representa muitas pontas deste mercado, e o tempo de correr atrás é agora para não chorar um prejuízo anunciado. Depois desse episódio, de uma coisa temos certeza: se o surf brasileiro não conseguir se manter no topo do mundo nas próximas gerações, não terá sido por falta de aviso.

A conversa completa está aqui neste episódio, que merece a audiência atenta dos seus ouvidos em cada milésimo de segundo. Um episódio definitivamente imperdível para todos que desejam ver o surf brasileiro, no mínimo, continuar no patamar de performance atual.

O Pinga

Luiz Henrique Campos, o Pinga, começou em 1982 no mercado do surf. Em 87, passou a trabalhar em marcas fortes como Lightning Bolt e Quicksilver. Depois, passou pela Hang Loose, fez o lançamento da MCD no mercado brasileiro, e seguiu para quase 15 anos de Oakley antes de entrar numa empreitada autônoma, passando para empresas sua experiência em como utilizar o surf da melhor maneira dentro do conceito e foco das marcas. Muito mais do que isso, Pinga faz parte da história e influenciou os surfistas que levaram o Brasil ao topo do mundo. Já foi técnico e manager dos campeões Adriano de Souza e Ítalo Ferreira e de muitos outros brasileiros que figuram entre os tops do CT.

Hoje, faz parte da equipe que pretende levar Filipe Toledo ao título mundial e tem uma visão clara, ideias afiadas e zero problema em falar o que pensa de todas as pontas do mercado. A começar pela crise de identidade das marcas de surf que, de tanto buscarem metas comerciais, acabaram se distanciando por completo do core.

As marcas de surf

“Perdemos a linha, o foco, o caminho. Fazendo um mea culpa, as marcas de surf se afastaram do surfista. O mercado de surfwear nasceu e cresceu com um conceito, com uma ideia, com um sonho. E no meio desse caminho a gente perdeu o driver do mercado”, aponta. Ele lembra que, nos anos 80, as marcas se reuniram a algumas pessoas para fundar a Associação Brasileira de Surf Profissional (Abrasp), montaram suas equipes de competição, tinham suas barracas marcando presença na praia, sempre com equipes bem estruturadas. A empresa em que trabalhava, por exemplo, além de patrocinar eventos, chegou a ter dois times de competição – um da Lightning Bolt e um da Quicksilver. Também marcas como OP, Sundek, Town & Country, Billabong, Fico e Hang Loose puxavam a frente. Foi nesta época que surgiu o primeiro ano do circuito brasileiro, a partir de marcas que acreditaram.

A influência

Nos últimos anos, porém, Pinga percebe a perda de controle da distribuição. “A gente parou de fazer produto para surfista, parou de se comunicar com surfista, e isso tem um preço. É a perda de conceito, de credibilidade, total perda de identidade. Imagina você ter uma marca de surf com um boardshort que não é bom pra pegar onda, em que o cara se atrapalha. Pelo fato de aloprar na distribuição para vender para esse público mais amplo e mais aberto, as marcas começaram a fazer produto não pensando mais no surfista. Isso levou a perder identidade, e, com isso, a força”, diz.

A lógica é simples. Ele explica que, a partir do momento em que o nicho, a comunidade do surf parar de usar o produto e a marca, o simpatizante também vai parar. O impacto não aparece no curto prazo porque existe um período de transferência de imagem. O impacto vai chegar no médio prazo, quando o simpatizante parar de usar porque percebeu que o surfista formador de opinião não usa mais.

O lifestyle

Para Pinga, o que atrai o simpatizante é o surf num todo. “O lifestyle, a tribo, a maneira de ver as coisas, o tipo de som. Qual esporte do mundo tem uma música? Não existe soccer music, ou basketball music, mas tem a surf music”, ri. É isso, segundo ele, que precisa ser valorizado. “É isso que atrai uma marca de cerveja, uma marca de carro. Mas a gente começou a pensar muito mais nisso do que na gente. E assim perdemos força”. Ele cita o profissional de marketing de uma grande empresa, que, quando perguntado sobre prioridades, disse que a principal preocupação deve ser o marketing interno. “Se eu não cuidar do marketing interno, eu vou perder o marketing externo”, resume.

“É como trabalhar numa marca e não usar o produto. Ser patrocinado por uma marca que você não curte o produto, e no dia a dia você não usa. O consumidor ou teu fã vai olhar e falar: ´caramba, nem o cara que é da empresa usa o produto´”, exemplifica. E a culpa, em sua visão, está na indústria, nas marcas que começaram a visar metas comerciais e financeiras incompatíveis. “Isso gera perda do controle porque você começa a se preocupar muito mais com número, com quantidade, do que com qualidade”, afirma.

O suicídio das marcas

Quando se vê metas crescendo e sendo alcançadas e, por outro lado, verbas de marketing ligadas ao dia a dia na praia encolhendo, parece claro “Eu acho suicídio, né. É muito complicado. A curto prazo você vai se manter. Mas vai ter que tomar uma decisão do que você quer ser”, defende. O resultado disso é que, dentro do canal de distribuição hoje em dia, quase não existem surf shops. O que se tem são lojas de moda jovem que vendem marcas de surf.

“Surf shop cheira a parafina, cheira a cola de antiderrapante. E hoje não. Para mim, a surf shop real é aquela que vende prancha, cordinha, deck, parafina, quilha. Isso é uma surf shop. O resto é moda jovem. São lojas legais, bacanas, são importantes para o mercado. Mas não são surf shops. A gente perdeu isso”. Ele estima que, hoje, no Brasil dos campeões mundiais de surf, existam menos surf shops do que nos anos 90 e começo dos 2000. “É aquela história: pensar no simpatizante e esquecer o nicho”.

A engrenagem do surf

“Hoje temos marcas globais com um faturamento interessante no Brasil, mas essas marcas não estão investindo na engrenagem do surf, no segmento”, aponta. Como engrenagem, ele aponta atleta, mídia, evento, surf shop, etc. Na última marca em que trabalhou internamente, Pinga conta sobre um projeto que nunca parava de olhar e investir no nicho. “A gente fazia WQS, fazia Pro Junior, fazia Carioca Amador, Profissional. A gente procurou fazer o dever de casa. Era anunciar na revista, depois no site, patrocinar o atleta, fazer o evento, material no ponto de venda, na surf shop, que é o 360 da engrenagem. Hoje, não vemos isso acontecer. Os caras estão preocupados com PDV, trade, comercial e margem de lucro. A quantidade versus a qualidade”, critica.

E no atual momento do mercado, em que ninguém vive um céu de brigadeiro em função dos impactos da Covid-19, ele percebe que as empresas que estavam organizadas, estão conseguindo passar bem pelo momento de transição para o e-commerce. Ao mesmo tempo, vê grandes marcas que não estavam preparadas e nem se movimentam para tentar buscar alternativas. Menciona uma possível iniciativa de evento profissional com premiação em dinheiro para tentar fazer a engrenagem andar. Mas reforça que muita marca hoje não valoriza o segmento.

A história

Para Pinga, o surf tem uma história que precisa ser contada, não só para ser valorizada como para dar consciência a quem está chegando agora. “A gente sabe a nossa história, mas a molecada não sabe porque a gente não conta. A mídia brasileira não conta a história do Paulinho (Matos), do Tinguinha, do Cauli Rodrigues, do Picuruta, do Luiz Alberto (Pecegueiro)”, reclama, expondo a importância de destacar a relevância destes surfistas tiveram no contexto histórico.

“Muita gente apareceu no mercado nos últimos cinco ou sete anos, e chega agora dizendo que são donos da bola. Mas a bola começou a ser construída muito tempo atrás. E tem muita gente envolvida. Muita gente tá ralando, muita gente ralou, muita gente se preocupou, colocou esforço, energia, pra chegar no momento que a gente chegou hoje. E eu fico revoltado. O cara pegou o bom, pegou a gente dominando o cenário”, observa.

Ele lembra a época em que era preciso fazer contas nos dedos, tentar convencer um empresário a mandar um atleta para o circuito mundial.

“E isso que a gente não precisava. Vamos falar a real. A gente tinha uma estrutura tão forte interna no Brasil que se um atleta quisesse viver de ser um surfista profissional dentro do Brasil, ele conseguia viver”.

Forte estrutura interna

“Uns 10 ou 12 anos atrás, lembro de um cara que fez R$ 90 mil em um mês competindo e conseguindo resultados em quatro eventos”, comenta. Naquela época, tudo era muito diferente. Havia uma estrutura interna muito forte, e existia o sonho de mandar o surfista para o Tour, de mostrar para os gringos que o brasileiro não era como eles pensavam. A realidade é que o surf no Brasil conseguiu crescer e se valorizar através do esforço de muita gente. Tanto é que se tornou vanguarda nos esportes de prancha, principalmente no surf e no skate. Falando especificamente do surf, Pinga enumera: “Os melhores juízes do mundo são brasileiros. Quem inventou o score eletrônico e a transmissão online foi um brasileiro (o Mano Ziu e sua equipe). Hoje, nossos atletas são muito mais bem preparados. A gente fez alguma coisa diferente aqui”.

(Quer saber mais sobre o assunto? Você pode encontrar mais pioneirismo dos brasileiros no surf no episódio 68 do Surf de Mesa)

Não deixar o legado morrer

Pinga afirma que não se pode deixar morrer o legado dessa geração criada sob muito esforço, assim como fez a Austrália. “Depois de Dean Morrison, do Joel (Parkinson), eles deixaram um gap muito grande pra trás dessa geração. E hoje a gente tem um gap (aqui no Brasil).”

Em sua visão, abaixo de 21 anos, existem hoje cinco surfistas com alguma chance. Claro que em um ano sem competições, é difícil identificar quem evoluiu. “Mas hoje a gente tem o Mateus Herdy, o Samuel (Pupo), o João (Chianca), o Wesley Dantas e o Lucas Vicente. São cinco moleques que estão no meio do caminho, na intermediária. Tem alguns outros orbitando em volta. Tem um Victor Bernardo, um Mottinha (Eduardo Motta) flutuando em volta deles, que se tiverem oportunidade de infraestrutura e investimento, de repente podem facilmente alcançar esses cinco”, avalia.

Mas para diminuir a lacuna, Pinga aponta para a geração que hoje está entre os 10 e 12 anos de idade. “É para eles que temos que começar a olhar. E o circuito mundial é para poucos. Na geração do Adriano (de Souza), depois do Jadson (André), a gente tinha 20, 25 moleques competindo entre si. Não eram cinco. Hoje tem esses cinco. Olha pra baixo e não vê. Posso estar errado, mas nenhum brilha o olho. Você vê bons meninos, excelentes surfistas, mas falta esse enfrentamento”, analisa. É nas categorias sub 10 e sub 12 que Pinga diz que se deve mirar com objetivo de trazer um volume de uns 20, 30 moleques subindo juntos para, dentro de cinco a sete anos, talvez ter uma nova geração forte.

Não existe milagre

De tempos em tempos, o mercado do surf parece acreditar em milagres. Primeiro, quando a Nike trouxe seus investimentos. Depois, o efeito Medina. Daí a Olimpíada. Espera-se, parece, encontrar uma ponte para o futuro. Mas se esquece que é preciso continuar no trabalho de base. Pinga não vê isso necessariamente como deslumbre, mas como um comportamento de apostar todas as fichas na bola da vez, de todos tentarem comer no mesmo pote. “Apareceu a marca x, e todo mundo corre pra lá. É a falta de estudar o mercado, de compreender o mercado, de criar um plano onde seja possível se desenvolver de uma maneira melhor em termos comerciais, porque o surf é caro”, afirma.

A ilusão olímpica

Com experiência em quatro Olimpíadas e cinco Jogos Panamericanos, Pinga conviveu com muito atleta olímpico de outras modalidades. “É alucinante, mas é um pouco ilusório”, diz. Isso porque são poucas as marcas que trabalham o ciclo olímpico, com contratos de quatro anos. A maioria das empresas, principalmente as do mainstream, geralmente de fora do segmento esportivo, vão procurar quem está com a vaga. Se no surf são quatro com a vaga, como fica o resto dos atletas? Na hora de vender o atleta olímpico você tem que deixar muito claro para o investidor que a chance de ter um retorno de branding durante os jogos é praticamente nula”, alerta.

Ou seja, se não houver um planejamento pré e pós-olimpíada com o atleta, ele pode dar quase nenhum retorno. “Tem o black period, que é um período antes, durante e depois da Olimpíada em que as marcas não patrocinadoras dos Jogos ou do Comitê Olímpico do país são impedidas de fazer qualquer tipo de marketing. Por isso, tem que fazer um trabalho de guerrilha, trabalhar forte a vida pessoal do próprio atleta”, explica. Em sua visão, existe sim um certo deslumbre e um pouco de empolgação, mas também há falta de informação sobre como funciona a regra do jogo.

O (não) posicionamento do surfista

Pinga comentou ainda sobre o comportamento dos surfistas. “A maioria deles não se posiciona em relação a nada. A gente sabe o que eles pensam, e a maioria não se pronuncia. Existe um receio, mas ao mesmo tempo eles têm que lembrar a força que eles têm”, defende, apontando o skate como exemplo.

“Quando Pedro Barros foi ao vivo no Esporte Espetacular e falou que com aquela galera ele não ia para Olimpíada, o que aconteceu? Bob Burnquist, Sandro Dias, eles assumiram o controle do negócio, botaram a casa em ordem. Hoje, sei que se envolvem, mas não estão mais no dia a dia. Só que eles colocaram a cara a tapa pra resolver a situação. E isso a gente não vê (no surf). Falta uma liderança. Porque a minha opinião, a nossa, a de outras pessoas que desempenham o mesmo trabalho que eu, são legais, bacanas e tudo, mas não têm a mesma força que a deles”, esclarece.

Pinga sente falta, hoje em dia, principalmente no circuito mundial, de uma liderança como se via antigamente, com Mick Fanning, Jake Patterson, Kieren Perrow, CJ e Damien Hobgood, que jogavam duro. “Uma postura igual a do Bobby Martinez, de se tirar o chapéu. Ele pagou o pato. Falou o que todo mundo queria falar, e vê o que aconteceu. O cara ficou sozinho. Eu tava a um metro e meio de distância da entrevista em Nova York, e era o que 95% dos surfistas queriam falar. Hoje estamos vivendo um momento muito similar, em que eles têm que se posicionar”, aponta. Para Pinga, a falta de posicionamento enfraquece os surfistas como grupo, como atletas.

Surfistas mais unidos

Ninguém se posiciona. Todo mundo fica quieto. Eles têm que conversar mais entre eles em relação a isso. Não vejo como anarquia, nada disso. Eles têm que entender o rumo da profissão, e eles têm que entender que eles são, sim, responsáveis pelas futuras gerações. Porque a decisão deles, o que vai acontecer no esporte, o que vai acontecer no cenário, tudo que acontecer agora vai impactar e vai influenciar nas gerações futuras”.

Ele usa o exemplo do All Blacks, time de Rugby da Nova Zelândia, que é a equipe mais vitoriosa da história de todos os esportes. Ele conta que o All Black de hoje tem que entregar para o All Black de amanhã a camisa melhor do que ele pegou do anterior. É a preocupação com a renovação, com a substituição, com os novos valores que vão surgir.

“A gente vê esportes em que os atletas são muito unidos. Na própria NBA, os caras são bem articulados. E isso é falta de diálogo entre eles (surfistas). Têm que se preocupar um pouco mais com o que está acontecendo, cobrar um pouco mais de envolvimento deles próprios dentro do esporte. O que está acontecendo, quais os valores de contratos de patrocínio, por que foi feito isso e não aquilo. E isso só vai vir com um envolvimento um pouco mais firme. Eles têm que falar mais, serem mais unidos, perguntar mais. Só com esse nível de informação, eles vão poder questionar”, acredita Pinga.

 

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