Existem tantas histórias para contar sobre as surfistas brasileiras que o assunto nunca se esgota. Nas praias, na Internet, na TV, no cinema. A gente está ocupando todas as plataformas e formatos possíveis porque é assim que se consolida um novo paradigma social. É dessa forma que, um dia, a gente ainda vai deixar de ver gênero sendo usado como adjetivo quando o assunto é surf.

E para falar das surfistas brasileiras no cinema, nesse episódio do podcast eu converso com a fotógrafa e filmmaker Anna Verônica. Desde 2018, ela está costurando histórias de competidoras e freesurfers para o projeto Rosa no Azul. Concebido inicialmente como um único filme, o projeto entrevistou tantas mulheres conforme a teia foi se construindo, que acabou sendo ampliado e dará novas crias.

Mas, aqui, ela conta tudo sobre o documentário principal que está em produção e que deve ser distribuído para exibição nos cinemas. Anna Verônica pretende colocar a força das surfistas brasileiras em circuito internacional de filmes. Essa conversa deixa claro não só como é incrível fazer surf também fora d´água, como tudo que pode mudar quando todos os espaços do surf estiverem sendo ocupados com mais equilíbrio entre os gêneros.

Luz, câmera, claquete e… ação!

O documentário

Quando iniciou a produção do seu documentário, Anna Verônica mal sabia o tamanho do universo que a esperava. “Quando a gente começa, não tem noção do que vai encontrar. E, de repente, começa a entender todo o histórico do surf no Brasil, como começou, o que passou cada geração. Até que percebe que não cabe em um filme só. São coisas tão incríveis, que você quer explorar mais. E para explorar mais, é preciso criar subprojetos”, diz.

Mas o documentário principal, motivo pelo qual tudo começou, é um filme com linguagem cinematográfica que deve ser distribuído para exibição em cinemas no Brasil, Estados Unidos, França e, quem sabe, Suíça. O filme, autofinanciado, tem como recorte principal a trajetória do surf feminino no Brasil pela ótica da competição. Assim, consegue dimensionar os reais impactos que a lacuna de campeonatos teve sobre gerações inteiras de mulheres surfistas no país. Mais do que isso, responde porque, em determinado momento, as surfistas brasileiras não conseguiram se ver representadas na elite feminina do surf mundial.

Das pioneiras até a nova geração, o filme conta a história do surf feito por mulheres no Brasil através das histórias de suas principais surfistas. 

 

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As gerações

De sua ampla pesquisa, Anna entendeu que cada geração foi responsável por acrescentar algo à construção do momento atual. As pioneiras foram as primeiras a se divertirem com uma prancha de madeirite no mar. Muito tempo depois, veio a geração de mulheres que viveu a evolução do esporte e do equipamento. Em seguida, vendo que o masculino se organizava, elas buscaram se inserir nos campeonatos. E aí se tem as primeiras a conquistarem resultado no Brasil e espaço para disputar mundiais.

Houve o período em que um forte circuito feminino se estabeleceu, com uma geração que conseguiu trilhar a trajetória completa para a formação de uma atleta. Primeiro, campeonatos locais e regionais na base, quando é possível provar talento, dedicação e resultado para si mesma e para os patrocinadores. Depois, circuito nacional até chegar a disputas mundiais, muito mais custosas, seja na divisão de acesso ou na elite.

 

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A engrenagem

Esse circuito nacional parecia forte e duradouro. Mas, como funciona como uma verdadeira engrenagem, quando um elo quebra, a sequência toda se desestrutura. No surf profissional, essa engrenagem é formada por campeonatos, atletas, público, mídia e patrocinadores. “Toda uma indústria que precisa estar envolvida completamente. Quando falta algum desses pilares, há um desequilíbrio e é como se tudo desmoronasse”, explica.

Sem patrocinador, não há campeonato. Se não há campeonato, não se desenvolvem surfistas profissionais. Sem surfistas, falta mídia, o que, por sua vez, vai desestimular patrocínios. E o que talvez pouca gente entenda é que isso tudo, por mais divertido que seja, é um negócio. Ainda que muitos insistam em chamar de “ajuda”. 

O bloqueio

Fato é que, em um determinado momento, no Brasil, essa engrenagem parou de girar para as mulheres.  “Muita gente fala que é um salto da Silvana (Lima), com 35 anos, até a Tainá (Hinckel), com 16. É muita diferença de idade. Mas na verdade não existe esse salto. Temos muitas surfistas, só que qualquer esporte demanda uma evolução. E no surf, durante um tempo no Brasil, houve o bloqueio dessa evolução no feminino”, aponta.

Fica difícil saber qual peça se desencaixou primeiro da engrenagem, mas a realidade é que durante muito tempo as meninas não tiveram cena competitiva e sofreram uma perda de patrocínio muito forte. Sem campeonato e patrocínio, a mídia, na época predominantemente impressa e feita por homens, priorizou outras pautas.

 

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A mídia

A abertura da mídia, com o arrebatamento do online sobre o impresso, tornou as possibilidades infinitamente pulverizadas. Com isso, assuntos antes periféricos ganharam espaço. “Hoje se consegue contar histórias que antes disputavam espaços restritos. Ainda que eu ache que o mais interessante são as histórias das pessoas, antes isso ficava escondido e local”, observa. 

“No Ceará, todo mundo vai te contar a história da Tita (Tavares). Aí você pergunta no Sudeste até para jornalistas de surf, e muitos não sabem. O jornalista não tem conhecimento do surf brasileiro feminino”, afirma. Talvez seja por isso que, hoje, muito se fala na explosão dos surf feminino. Mas a realidade é que as mulheres sempre estiveram na água. Na década de 30, por exemplo, quando Thomas Rittscher colocou sua prancha oca na água pela primeira vez, sua irmã Margot estava lá e foi a segunda pessoa a se aventurar na então novidade.

Questão estrutural

Foram as questões estruturais associadas ao papel da mulher na sociedade que definiram o protagonismo masculino também no surf. Observando a história, Anna diz que todas as mulheres, uma hora ou outra, acabaram tendo um momento de pausa no surf, e isso geralmente acontecia no momento da gravidez.

Durante muito tempo, a mulher continuou sendo a única que se divide entre trabalho, filho, casa, comida. Na hora que um homem diz: ´vou surfar´, todo mundo acha normal. Mas se a mulher tem um filho e deixa ele com alguém pra ir surfar, ela é julgada. Algumas vão virar e falar: ´normal´. E aí vão ser chamadas de feministas.”

Hoje em dia é comum ver mulheres que surfam até o último mês de gravidez. Mas não se pode deixar de colocar essa questão estrutural como uma variável da mulher dentro do esporte. “Seja ter um filho ou toda a questão de como ela está inserida dentro da sociedade. Durante muito tempo, ser surfista foi sinônimo de ser vagabundo, o que muitas vezes é aceito para o homem, enquanto para a mulher é encarado de outra forma” diz.

A evolução

A questão é que os homens protagonizaram a história das competições de surf e, hoje, quando os surfistas parecem ter atingido um nível máximo de performance, as mulheres têm um muito a evoluir. A expectativa de evolução, por si só, poderia ser capaz de tornar a competição feminina mais empolgante para a audiência do que o possível platô que vive a competição masculina? Como isso é bem difícil de prever, Anna gosta de olhar para o exemplo dos esportes que se profissionalizaram há mais tempo que o surf.

No tênis, por exemplo, que já tem um nível de patrocínio, valores, estilo e quantidade de praticantes e investidores bem estabelecido, é notável que, em determinado momento, a evolução passa a ser menor em relação ao tempo.  “Talvez seja aí que a gente passe a ver uma competição de surf no feminino até mais interessante do que no masculino, que já se sabe o que esperar. É incrível, mas nos acostumamos a ver. De repente, conforme certas disputas se tornem mais acirradas e constantes no feminino, isso passe a gerar mais curiosidade e audiência”, cogita.

 

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Igualdade

As premiações entre gêneros foram equalizadas. Agora, resta saber quando haverá iguais condições de desenvolvimento. Qualidade de ondas, por exemplo. Quando, em uma competição, as mulheres deixarão de entrar nas condições de mar menos interessantes? Decisões como essa, que foram normalizadas, na verdade, estão longe de serem normais.   

Para Anna, quando as mulheres ocuparem posições que fazem a engrenagem do surf girar, terão a garantia de equilibrar prioridades, impedindo que o feminino fique abaixo em relação ao masculino. “Quando um dos head judges for mulher, por exemplo… Enfim, quando todas as partes forem compostas também por mulheres. Isso não significa que a gente não quer que tenha homens. Mas sim algo um pouco mais igualitário para que, se acontecer da mulher pegar um mar pior, sabermos que é simplesmente um acaso”, almeja.

O mercado

Ideal seria a neutralidade. Mas, hoje em dia, o que se vê é a priorização do masculino em tudo no surf. “Num patrocínio, num apoio de acessórios, no momento que entra no mar, nos filmes. Filmes feitos para homens, por homens, com linguagem para comunicar com o homem. Na hora que você coloca só uma bunda de uma mulher num biquíni e coloca um cara quebrando na onda, você não quer comunicar com o público feminino”, aponta.

Pouco se percebeu, até agora, que mirar no público feminino pode ser mais estratégico comercialmente. “Qualquer pessoa de marketing vai saber melhor do que eu explicar que a mulher é responsável pela escolha de compra”, diz. Uma mulher surfista pode consumir mais itens do que um homem surfista porque, culturalmente, ela já é levada a cuidar mais de si mesma. “O cara coloca uma bermuda e às vezes não vai passar nem um filtro solar. A mulher vai passar produtos, ter biquínis diferentes, maiôs diferentes. Combinar as coisas. É inegável que existe uma grande movimentação da indústria do surf pela mulher”, aponta.

 

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Carreira e surf

Anna Verônica se descreve como uma engenheira que, depois de 12 anos de carreira, entendeu que era mais feliz fotografando, A decisão de transformar isso em profissão aconteceu há nove anos, e há mais ou menos seis ela entrou no universo da fotografia de surf. “Eu não sou surfista, então eu entrava no mar e os surfistas me explicavam onde eu devia ficar”, conta.

Na produção do documentário, seu processo também se deu muito através das próprias surfistas. “Apesar de eu ter vivido todas aquelas épocas, eu não vivi nenhuma delas inserida dentro do cenário do surf. Então, comecei a entender aquele mundo através do que cada uma ia me falando. E assim ia descobrindo cada uma que foi importante na história através da outra”, explica.

Mulheres envolvidas

Por isso, Anna considera que o filme não é feito só por ela, mas também pelas surfistas que abriram esse universo. Conforme desbravava a história ao longo do projeto, Anna foi criando uma planilha com nomes, contatos, características do surf de cada uma, etc. Quando viu, tinha uma pasta. “Quase um cadastro nacional de surfistas mulheres de todas as gerações”, brinca. A quantidade de informação foi um dos desafios.

Outro desafio foi o custo de um projeto dessa dimensão. O território nacional é muito grande, e houve a demanda de viagens por toda a costa brasileira, além de tempo de espera por surfistas que hoje não moram mais no Brasil. 

No meio do caminho, Anna trouxe a diretora Priscila Guedes para reforçar o projeto com seu conhecimento na linguagem cinematográfica e, principalmente, na distribuição. “Não adianta fazer um filme se as pessoas não assistirem. E, no caso do feminino, é cada vez mais fundamental que as pessoas estejam envolvidas”, conclui.

 

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