Long John 6 milímetros com gorro, luva mitten – aquelas que deixam os dedos juntinhos – e botinha 7 milímetros. Se essa fosse a condição para poder surfar meio metro mexido na maior parte do tempo, o que você faria?
Texto por Carolina Bridi
Foto: Make Palmer
Foto: Make Palmer
Fotos: Tina Heiss
Surfar nos Grandes Lagos
Uma das principais diferenças práticas do surf está relacionada à salinidade da água, que afeta a flutuação. Na água salgada, a flutuação é maior. Para a água doce do lago, portanto, é preciso aumentar o volume da prancha para compensar a falta de flutuação. Mesmo no surf de pranchinha, as pranchas são mais cheias e as medidas pensadas para fazer essa compensação.
A segunda questão relacionada a equipamento técnico são as roupas. A água é fria praticamente o ano todo. No verão, a temperatura da água pode até chegar a picos de 25 a 26 graus Celsius por uma ou duas semanas. Mas de dezembro a março, quando não está congelada, gira em torno de 1ºC.
Em algum momento, diz Antonio, até dá para cair no pelo, mas é recomendado pelo menos um short john. Em Toronto, de no mínimo 3.2 mm devido à profundidade do lago. Se tem onda, é porque tem vento. Então, mesmo que na orla a água esteja mais quente, ao misturar com a água gelada do fundo do lago, ficará sempre frio.
A mobilidade e a flexibilidade ficam muito reduzidas. Os movimentos são pesados. Mas Antonio vê este como um ótimo cenário para melhorar o condicionamento físico e a habilidade no surf. O pico é um beach break, tem que ter braço e lutar para passar a arrebentação.
Tudo é mais pesado, mais demorado e exige muito mais esforço. “As condições são tão desafiadoras que quando chego em Floripa, posso remar por quatro horas seguidas. Caindo no pelo, com mais flutuação e as ondas são perfeitas.”
Outra diferença é a disponibilidade do tipo de onda. Lá são ondas formadas pelo vento, de curto período. “Geralmente é bagunçado, maral. É a condição que a maioria dos surfistas de oceano olha e diz, ‘ah, hoje não’.” Mas no final da tempestade, o vento para ou fica terral, entrando um intervalo de duas a três horas de melhor formação, muitas vezes tubulares, até ir diminuindo e assumir o visual original do lago, totalmente flat.
Fotos: Make Palmer
Outra grande diferença é a previsão de ondas e a leitura para entender o swell e as melhores condições, uma ciência minuciosa e complicada, completamente diferente da do oceano, que Antonio demorou cerca de três anos para entender. Acabou desenvolvendo um sistema próprio de análise. Os aplicativos mais confiáveis são Windguru e similares, já que ali tudo é uma questão de vento e temperatura.
No verão, como água e temperatura esquentam muito, é preciso forte vento para gerar uma onda. Algo como vento de furacão, difícil acontecer. Quando chega setembro, outono, começa a temporada de furacões no Caribe, com tempestades de baixa pressão fortíssimas. Isso suga o vento do Polo Norte, levando-o até o Canadá, explica Antonio.
Conforme ar e água vão ficando mais frios, menos vento é preciso. Então no inverno, embora a temporada de furacão tenha acabado, qualquer ventinho forma uma onda. Em Toronto, especialmente, o inverno é a melhor temporada. Muitos dos outros lagos congelam, mas por ser uma metrópole, o calor da cidade mantém a orla sem gelo durante boa parte da estação, formando boas ondinhas quando o vento entra na direção certa.
A temporada de surf vai até abril, quando é primavera, época que já exige um pouco mais de vento. De qualquer forma, é no inverno que a onda entra com condições mais limpas, há menos gente na água e a frequência de ondas é maior.
Interessante que, por mais diferenças que existam entre surfar no mar e nos lagos, algo permanece intocado: o inverno continua entregando as melhores condições de surf. Agora, convenhamos, precisamos diferenciar invernos de invernos.
Uma outra relação com o frio
Fotos: Lucas Murnaghan
Fotos: De cima para baixo, Lucas Murnaghan e Denise Militzer
E a outra explicação: comprometimento. “A nossa comunidade tem muita gratidão pela possibilidade de ter onda aqui. Não são as melhores ondas, é frio, mas a gente vive na terceira maior cidade da América do Norte, tem essa vida pancada de tempo e dinheiro. Todo mundo correndo atrás, correndo atrás. E de repente, uma vez por semana, aparece um swell e você larga tudo e surfa por três horinhas. Acho que é um comprometimento e é a gratidão mesmo. Aqui a gente fala, “not taking it for granted”. Quando é uma opção na nossa vida, a gente não desperdiça essa possibilidade.”
um lugar pra ser
Antonio começou a sofrer preconceito antes mesmo de entender do que estavam falando quando ouvia os ‘nomes’ dos quais o chamavam. “Eu tive que sufocar quem eu era. Virei um ótimo ator de mim mesmo para tentar ser alguém que a sociedade esperava que eu fosse.” A família era de Joinville. Ele e o irmão mais velho surfavam em São Francisco do Sul. Naquela época, anos 90, até tinha uma certa tensão de localismo, mas o que Antonio ouvia na água ia muito além disso. “Eu nem tinha compreendido o que eu era, quem eu era, mas eu já sabia que não existia lugar pra mim ali. Se você não fosse exatamente como eles, não tinha como. E eu não me senti seguro, eu parei de surfar durante a adolescência porque não me senti seguro.”
Acabou encontrando no skate um ambiente menos agressivo. “Era um submundo mais alternativo, com mais aceitação.” Andava de skate e tinha uma banda de hardcore, ainda assim via suas amigas, muitas delas bissexuais, sendo celebradas naquela cena enquanto homens que estavam de alguma forma fora da heteronormatividade não podiam se expressar da mesma forma. “Mesmo numa subcultura daquela, não tive a possibilidade, não tive um ambiente seguro em que eu pudesse ser quem eu era.”
Foram três anos e meio de Califórnia, seis meses de Austrália e uma breve passagem pelo Texas até que os rumos da vida o levaram ao Canadá, onde, muito mais do que encontrar a si mesmo, formou elos de pertencimento a partir do eco de sua própria percepção e experiência. “Essa foi a primeira comunidade em que eu pude ser autêntico. Fui exatamente quem eu sou e fui celebrado. Não sofri preconceito, nunca ouvi fofoquinha.”
“Eu podia surfar em qualquer lugar, ninguém queria saber se eu era gay. Eu não precisava falar pra ninguém, eu podia entrar e sair, ninguém ia me questionar.”
Fotos: De cima para baixo, Lucas Murnaghan e Denise Militzer
SURF THE GREATS
“Tinha só uma surf shop vendendo prancha, mas não contando onde estavam as ondas. Eles queriam fazer dinheiro, mas não queriam mais pessoas nas suas ondas.”
Ele e seu grupo de amigos expatriados – de brasileiro, venezuelano, peruano, chileno, português, australiano e sul-africano – chegaram a sofrer xenofobia da galera mais core do surf canadense. Mas esse início acabou sendo engolido por um movimento de gente que estava descobrindo sobre as ondas pelos fóruns online e grupos de Facebook, comprando prancha, long john, querendo saber onde teria onda no dia.
“As pessoas chegavam, iam andando no píer congelado e pulavam para não ter que passar pela arrebentação. Nunca tinham entrado em um mar com onda na vida, mas acabavam pulando dentro da corrente que ficava do lado do píer e iam embora. Quem estava surfando tinha que ir lá fora e buscar.”
Percebendo a necessidade de espalhar conhecimento sobre o esporte para a segurança de quem estava acessando o surf pela primeira vez, Antonio criou o Surf for Greats, a primeira escola de surf nos Grandes Lagos. Fez treinamento com a International Surfing Association (ISA) na Costa Rica, fez curso de salva-vidas e desenvolveu uma metodologia própria.
Da forma de ler a previsão das ondas a práticas de iniciação em dias flats, a didática é completamente diferente das aulas de surf no mar porque a realidade é outra.
Acima de qualquer outra coisa, Antonio, que um dia deixou o Brasil porque não encontrou lugar nestas águas, criou nos lagos canadenses uma verdadeira comunidade. Encontrou e ofereceu pertencimento.
Surf The Greats completa 10 anos agora em 2024. Muita coisa vem mudando nos últimos três, desde a perda de Lucas, com quem também construiu a história desta comunidade crescente, mas antes disso, uma história de amor. Antonio hoje tem dividido seu tempo entre Toronto e Florianópolis e sente que a comunidade estabelecida no Canadá é autêntica e tem valores muito elevados. “Tem vários grupos comunitários surgindo. A galera está continuando o trabalho que a gente começou. Eu senti que meu trabalho estava cumprido aqui.”
As metodologias criadas serviram de modelo para novas escolinhas de surf, espalhando o ensino, conhecimento e a prática do esporte na região. Além disso, desde que passaram a voar a bandeira do orgulho LGBTQIA+ o ano inteiro fora da loja e se anunciarem como uma empresa pertencente e operada por membros da comunidade (Gay Owned and Operated Business), decisão tomada em 2018, inspiraram outros grupos em outras partes do mundo e criaram conexão com mais pessoas e projetos. “Demorei muito tempo pra aceitar que eu tinha a missão de me expor e de usar a minha voz pra criar mais aceitação na indústria de surf.”
Fotos: Denise Militzer, Jordan Fritz e Lucas Murnaghan
Fotos: Tina Heiss
Em Toronto, a escola e a loja física dão espaço à loja online, e Antonio agora segue para a carreira de consultor e palestrante, levando as lições que aprendeu para outras comunidades, outras organizações e corporações. Quando conversamos, ele tinha acabado de voltar de Whistler, nas montanhas da Costa Leste, perto de Vancouver, onde tinha feito sua primeira apresentação sobre criação de comunidade, inclusão e diversidade.
Se a cultura do surf parece atrasada ainda em relação à aceitação e preconceito, Antonio atribui à história contemporânea. “A comunidade do surf, globalmente, tem muita gente incrível, muita gente progressista, muita gente que compartilha ondas. Essa história tóxica de localismo não é a história do surf da Polinésia, não é a história original do Hawaii. É a história dos anos 50 e 60, quando o homem branco descobriu o surf através de Hollywood, se apoderou dele e falou: ‘não, essa é a nossa tribo e todo mundo que não for como nós não pertence aqui’. Tem muito trabalho ainda pra reverter isso.”
Desde o Canadá, um dos países que considera mais progressistas em relação à imigração, diversidade e direitos humanos, onde se sente aceito e bem-vindo em qualquer lugar do país, Antonio sabe que todos os espaços são seus. Inclusive Floripa, onde comprou sua casa em 2021. Nos meses que agora passa no Brasil, tem confrontado traumas das agressões verbais que sofreu nestas águas e está começando a se sentir mais confortável em surfar por aqui também.
Antonio pertence a estes mares.
Publicado originalmente na edição impressa nº 02 da Revista Flamboiar. Para saber mais, clique aqui
A história de Antonio também deu origem ao documentário Fresh Water, disponível no Globo Play
Long John 6 milímetros com gorro, luva mitten – aquelas que deixam os dedos juntinhos – e botinha 7 milímetros. Se essa fosse a condição para poder surfar meio metro mexido na maior parte do tempo, o que você faria?
Foto: Drew Austin
Texto por Carolina Bridi
Foto: Make Palmer
Fotos: Tina Heiss
SURFAR NOS GRANDES LAGOS
Uma das principais diferenças práticas do surf está relacionada à salinidade da água, que afeta a flutuação. Na água salgada, a flutuação é maior. Para a água doce do lago, portanto, é preciso aumentar o volume da prancha para compensar a falta de flutuação. Mesmo no surf de pranchinha, as pranchas são mais cheias e as medidas pensadas para fazer essa compensação.
A segunda questão relacionada a equipamento técnico são as roupas. A água é fria praticamente o ano todo. No verão, a temperatura da água pode até chegar a picos de 25 a 26 graus Celsius por uma ou duas semanas.
De dezembro a março, quando não está congelada, a água gira em torno de 1ºC.
Em algum momento, diz Antonio, até dá para cair no pelo, mas é recomendado pelo menos um short john. Em Toronto, de no mínimo 3.2 mm devido à profundidade do lago. Se tem onda, é porque tem vento. Então, mesmo que na orla a água esteja mais quente, ao misturar com a água gelada do fundo do lago, ficará sempre frio.
Já no inverno, é preciso lançar mão do aparato completo. Long bem grosso, algo como 6 milímetros, luva e botinha de 7 milímetros. Quando molha, esse equipamento fica cinco quilos mais pesado. Surfar nessas condições, segundo Antonio, é como treinar para uma maratona com dois ou três elásticos grossos criando resistência na direção contrária.
A mobilidade e a flexibilidade ficam muito reduzidas. Os movimentos são pesados. Mas Antonio vê este como um ótimo cenário para melhorar o condicionamento físico e a habilidade no surf. O pico é um beach break, tem que ter braço e lutar para passar a arrebentação. Tudo é mais pesado, mais demorado e exige muito mais esforço. “As condições são tão desafiadoras que quando chego em Floripa, posso remar por quatro horas seguidas. Caindo no pelo, com mais flutuação e as ondas são perfeitas.”
Outra diferença é a disponibilidade do tipo de onda. Lá são ondas formadas pelo vento, de curto período.
“Geralmente é bagunçado, maral. É a condição que a maioria dos surfistas de oceano olha e diz, ‘ah, hoje não’.”
Mas no final da tempestade, o vento para ou fica terral, entrando um intervalo de duas a três horas de melhor formação, muitas vezes tubulares, até ir diminuindo e assumir o visual original do lago, totalmente flat.
Fotos: Make Palmer
Outra grande diferença é a previsão de ondas e a leitura para entender o swell e as melhores condições, uma ciência minuciosa e complicada, completamente diferente da do oceano, que Antonio demorou cerca de três anos para entender. Acabou desenvolvendo um sistema próprio de análise. Os aplicativos mais confiáveis são Windguru e similares, já que ali tudo é uma questão de vento e temperatura.
No verão, como água e temperatura esquentam muito, é preciso forte vento para gerar uma onda. Algo como vento de furacão, difícil acontecer.
Quando chega setembro, outono, começa a temporada de furacões no Caribe, com tempestades de baixa pressão fortíssimas. Isso suga o vento do Polo Norte, levando-o até o Canadá, explica Antonio. É quando começa a temporada de surf por lá. As ondas começam a aparecer em alguns lugares de duas a três vezes por semana, e quem surfa em Toronto faz bate-volta para pegar onda também em outros lagos.
Conforme ar e água vão ficando mais frios, menos vento é preciso. Então no inverno, embora a temporada de furacão tenha acabado, qualquer ventinho forma uma onda. Em Toronto, especialmente, o inverno é a melhor temporada. Muitos dos outros lagos congelam, mas por ser uma metrópole, o calor da cidade mantém a orla sem gelo durante boa parte da estação, formando boas ondinhas quando o vento entra na direção certa.
A temporada de surf vai até abril, quando é primavera, época que já exige um pouco mais de vento. De qualquer forma, é no inverno que a onda entra com condições mais limpas, há menos gente na água e a frequência de ondas é maior.
Interessante que, por mais diferenças que existam entre surfar no mar e nos lagos, algo permanece intocado: o inverno continua entregando as melhores condições de surf.
Agora, convenhamos, precisamos diferenciar invernos de invernos.
Fotos: De cima para baixo, Lucas Murnaghan e Denise Militzer
uma outra relação com o frio
Com invernos punks, há lugares que chegam a -50ºC, -70ºC. Antonio considera o canadense um povo resiliente, e analisa a relação do brasileiro com o frio como algo muito negativo devido à falta de infraestrutura, como calefação.
“Uma coisa que aprendi quando mudei pra cá é que não existe frio, existe a falta de roupas técnicas para enfrentar o frio. Quando você tem o equipamento necessário, você pode fazer qualquer esporte.”
Já o surf é algo visto como extremo pelos próprios canadenses, que também se impressionam com imagens de gente com estalactites de gelo penduradas na barba e no cabelo. “Acho que nós somos um pouco desregulados, um pouco doidos”, diz Antonio, rindo. Mas encontra duas explicações para isso. Uma delas é a tecnologia do neoprene, que evoluiu a ponto de permitir sessões de até três horas em -25ºC, em que o surfista tem gelo do lado de fora do corpo e ainda assim está seguro dentro da roupa.
E a outra explicação: comprometimento.
“A nossa comunidade tem muita gratidão pela possibilidade de ter onda aqui. Não são as melhores ondas, é frio, mas a gente vive na terceira maior cidade da América do Norte, tem essa vida pancada de tempo e dinheiro. Todo mundo correndo atrás, correndo atrás. E de repente, uma vez por semana, aparece um swell e você larga tudo e surfa por três horinhas. Acho que é um comprometimento e é a gratidão mesmo. Aqui a gente fala, “not taking it for granted”. Quando é uma opção na nossa vida, a gente não desperdiça essa possibilidade.”
Fotos: De cima para baixo, Denise Militzer e Jordan Fritz
um lugar para ser
Antonio começou a sofrer preconceito antes mesmo de entender do que estavam falando quando ouvia os ‘nomes’ dos quais o chamavam.
“Eu tive que sufocar quem eu era. Virei um ótimo ator de mim mesmo para tentar ser alguém que a sociedade esperava que eu fosse.”
A família era de Joinville. Ele e o irmão mais velho surfavam em São Francisco do Sul. Naquela época, anos 90, até tinha uma certa tensão de localismo, mas o que Antonio ouvia na água ia muito além disso. “Eu nem tinha compreendido o que eu era, quem eu era, mas eu já sabia que não existia lugar pra mim ali. Se você não fosse exatamente como eles, não tinha como. E eu não me senti seguro, eu parei de surfar durante a adolescência porque não me senti seguro.”
Acabou encontrando no skate um ambiente menos agressivo. “Era um submundo mais alternativo, com mais aceitação.” Andava de skate e tinha uma banda de hardcore, ainda assim via suas amigas, muitas delas bissexuais, sendo celebradas naquela cena enquanto homens que estavam de alguma forma fora da heteronormatividade não podiam se expressar da mesma forma. “Mesmo numa subcultura daquela, não tive a possibilidade, não tive um ambiente seguro em que eu pudesse ser quem eu era.”
Aos 18 anos, deixou Joinville para morar em Balneário Camboriú. Pouco depois, foi para Florianópolis. Mas aos 20 anos, quando não conseguia mais ter uma perspectiva de vida no Brasil, foi morar na Califórnia, onde, pela primeira vez, conseguiu existir.
“Eu podia surfar em qualquer lugar, ninguém queria saber se eu era gay. Eu não precisava falar pra ninguém, eu podia entrar e sair, ninguém ia me questionar.”
Acabei conhecendo várias pessoas com quem eu surfava, eles sabiam, me viam com meu namorado. Uma cultura que eu sentia que eu pertencia.”
Foram três anos e meio de Califórnia, seis meses de Austrália e uma breve passagem pelo Texas até que os rumos da vida o levaram ao Canadá, onde, muito mais do que encontrar a si mesmo, formou elos de pertencimento a partir do eco de sua própria percepção e experiência. “Essa foi a primeira comunidade em que eu pude ser autêntico. Fui exatamente quem eu sou e fui celebrado. Não sofri preconceito, nunca ouvi fofoquinha.”
Fotos: De cima para baixo, Sam Moffatt e Jordan Fritz
SURF THE GREATS
“Tinha só uma surf shop vendendo prancha, mas não contando onde estavam as ondas. Eles queriam fazer dinheiro, mas não queriam mais pessoas nas suas ondas.”
Ele e seu grupo de amigos expatriados – de brasileiro, venezuelano, peruano, chileno, português, australiano e sul-africano – chegaram a sofrer xenofobia da galera mais core do surf canadense. Mas esse início acabou sendo engolido por um movimento de gente que estava descobrindo sobre as ondas pelos fóruns online e grupos de Facebook, comprando prancha, long john, querendo saber onde teria onda no dia.
“As pessoas chegavam, iam andando no píer congelado e pulavam para não ter que passar pela arrebentação. Nunca tinham entrado em um mar com onda na vida, mas acabavam pulando dentro da corrente que ficava do lado do píer e iam embora. Quem estava surfando tinha que ir lá fora e buscar.”
Percebendo a necessidade de espalhar conhecimento sobre o esporte para a segurança de quem estava acessando o surf pela primeira vez, Antonio criou o Surf for Greats, a primeira escola de surf nos Grandes Lagos. Fez treinamento com a International Surfing Association (ISA) na Costa Rica, fez curso de salva-vidas e desenvolveu uma metodologia própria. Da forma de ler a previsão das ondas a práticas de iniciação em dias flats, a didática é completamente diferente das aulas de surf no mar porque a realidade é outra.
Aquela percepção de acolher quem queria encontrar o surf em um ambiente tão difícil acabou se transformando mais tarde em uma loja. Mas, mais do que isso, em um espaço de integração, projetos, mutirões, ideias e encontros. Iniciativas como o Brainfreeze, por exemplo, um evento que reúne as pessoas para um mergulho em águas congelantes, e que já arrecadou mais de 500 milhões de dólares para a causa da saúde mental de adolescentes e jovens adultos.
Acima de qualquer outra coisa, Antonio, que um dia deixou o Brasil porque não encontrou lugar nestas águas, criou nos lagos canadenses uma verdadeira comunidade. Encontrou e ofereceu pertencimento.
Surf The Greats completa 10 anos agora em 2024. Muita coisa vem mudando nos últimos três, desde a perda de Lucas, com quem também construiu a história desta comunidade crescente, mas antes disso, uma história de amor. Antonio hoje tem dividido seu tempo entre Toronto e Florianópolis e sente que a comunidade estabelecida no Canadá é autêntica e tem valores muito elevados. “Tem vários grupos comunitários surgindo. A galera está continuando o trabalho que a gente começou. Eu senti que meu trabalho estava cumprido aqui.”
Fotos: Lucas Murnaghan
“Demorei muito tempo pra aceitar que eu tinha a missão de me expor e de usar a minha voz pra criar mais aceitação na indústria de surf.”
Fotos: De cima para baixo, Lucas Murnaghan e Denise Militzer
Em Toronto, a escola e a loja física dão espaço à loja online, e Antonio agora segue para a carreira de consultor e palestrante, levando as lições que aprendeu para outras comunidades, outras organizações e corporações. Quando conversamos, ele tinha acabado de voltar de Whistler, nas montanhas da Costa Leste, perto de Vancouver, onde tinha feito sua primeira apresentação sobre criação de comunidade, inclusão e diversidade.
Se a cultura do surf parece atrasada ainda em relação à aceitação e preconceito, Antonio atribui à história contemporânea. “A comunidade do surf, globalmente, tem muita gente incrível, muita gente progressista, muita gente que compartilha ondas. Essa história tóxica de localismo não é a história do surf da Polinésia, não é a história original do Hawaii. É a história dos anos 50 e 60, quando o homem branco descobriu o surf através de Hollywood, se apoderou dele e falou: ‘não, essa é a nossa tribo e todo mundo que não for como nós não pertence aqui’. Tem muito trabalho ainda pra reverter isso.”
Desde o Canadá, um dos países que considera mais progressistas em relação à imigração, diversidade e direitos humanos, onde se sente aceito e bem-vindo em qualquer lugar do país, Antonio sabe que todos os espaços são seus. Inclusive Floripa, onde comprou sua casa em 2021. Nos meses que agora passa no Brasil, tem confrontado traumas das agressões verbais que sofreu nestas águas e está começando a se sentir mais confortável em surfar por aqui também.
Antonio pertence a estes mares.
Fotos: Tina Heiss