Desde que veio a público, a difícil situação financeira de Pat Curren tem levantado o mais variados questionamentos. Como a gente não curte julgamentos, muito menos os promovidos pela horda desgovernada que habita os longos corredores poloneses da Internet que são as caixas de comentários das redes sociais, resolvemos voltar os questionamentos para nós mesmos.
Algo pode ser feito para que as lendas do surf tenham seu reconhecimento convertido em condições dignas de vida? Até que ponto valorizamos a cultura surf em atos e não só em bate papos? Qual a responsabilidade que nos cabe no surf como coletivo? Ou será que nada disso faz sentido e não passa de pura hipocrisia?
Para tentar responder essas dúvidas internas, neste episódio do Surf de Mesa, Junior Faria, Carolina Bridi e Raphael Tognini olham para si mesmos e para o que veem ao seu redor em busca de caminhos. Nem sempre disponíveis, possíveis ou eficientes.
A vaquinha do Pat
Aos 88 anos, o lendário shaper e big rider Pat Curren vive em condições precárias com sua mulher Mary e a filha – que tem necessidades especiais – em um trailer no estacionamento de uma praia na Califórnia. Sem acesso a banheiro privado, a família tem dificuldades para comprar comida e ainda corre o risco de perder o trailer. A notícia veio a público quando Paul Schmidt, um shaper de Nova York, lançou uma campanha de financiamento coletivo na plataforma GoFundMe, entitulada Friends of Pat Curren, com objetivo de arrecadar 100 mil dólares para doar à família.
Além do pioneirismo e espírito desbravador de Pat no surf de ondas grandes nas décadas de 50 e 60, ele também é pai do tricampeão mundial Tom Curren e do fotógrafo Joe Curren. Fator suficiente para levar a notícia a termos sensacionalistas. Os filhos se manifestaram através das redes sociais, falando da situação que, aparentemente, vinha sendo tratada com discrição a pedido do próprio Pat, segundo o que informou Joe em seu perfil no Instagram.
Ânimos e versões, sempre inflamadas por comentários de quem até então nem lembrava que Pat Curren existia, correm livres na Internet. Enquanto a vaquinha se aproxima dos 70% da meta em menos de duas semanas. Tretas internéticas e casos de família a parte, o assunto chama atenção para mais do que a situação de um único homem.
Além de Pat
É inevitável se perguntar os mecanismos que fazem com que pessoas relevantes para a história do surf passem por situações tão difíceis quando saem de cena. E, mais do que isso, é fundamental levantar questionamentos sobre como nos relacionamos efetivamente com a cultura surf ao nosso redor. De forma bem direta, a pergunta é: Existe responsabilidade coletiva, entre quem vive o surf, de valorizar a história e quem faz parte dela?
Seria muito fácil afirmar que o surf não se importa com seus ídolos e com sua história. Mas tomar o surf como entidade separada de cada surfista serve, indiretamente, para isentar todos de qualquer responsabilidade. Se o surf não é uma empresa, uma entidade ou uma pessoa, tratar este sujeito utópico como responsável é o atalho perfeito para a ineficiência de qualquer debate. Em resumo, é como trazer todo mundo e, ao mesmo tempo, ninguém para a conversa.
Os contornos se tornam ainda mais sinuosos ao olhar para a realidade do surf nacional. Se existem histórias como essa na Califórnia, que supostamente valoriza sua história por ser base cultural do surf moderno, que tem lendas de alcance mundial e uma economia desenvolvida, o que há de se encontrar pelo Brasil em uma rápida busca pelas lendas nacionais do surf?
A cultura do escapismo
No Brasil, o descarte de personalidades importantes na história é algo que não se restringe ao surf, nem somente ao cenário esportivo. É cultural, aliás, a desvalorização do sujeito que se torna economicamente improdutivo. O velho, o antigo, a origem, a história são, no Brasil, frequentemente descartados e, muitas vezes, apagados.
Quando se fala nos pioneiros do surf, fala-se ainda de uma identidade que refletia a contracultura, a negação do sistema. São eles a essência de liberdade que o surf, mesmo hoje sendo uma indústria complexa, continua vendendo como imagem. São grandes as chances desta identidade livre de amarras ter resultado em escolhas pessoais pouco preocupadas à consciência de subsistência na velhice. Isso significa que as chances de termos centenas de Pat Currens espalhados pelo Brasil em situação semelhante são muito grandes.
É inegável também que faz parte do surf a cultura do escapismo. Uma cultura, por definição, bastante individualista. A faceta egoísta dessa característica pode criar relações nem sempre fáceis. Sejam elas familiares ou sociais. Alguém tem direito a opinar sobre como o outro vive? No caso de sofrer impacto direto em sua própria vida, sim. No caso do indivíduo platônico que criamos sobre nossos ídolos, não. E, neste caso, o surfista não é muito bom na função de humanizar seus ídolos. Ou os trata como deuses ou como descartáveis. Não há equilíbrio entre estas duas visões através da humanização do sujeito.
O surf como coletivo
Tendo em vista que o surf não é uma entidade, mas sim um coletivo, que pontas teriam responsabilidade de estruturar condições para que a história não se apague? A mídia tem papel fundamental não só de contar e documentar para manter vivo um arquivo do surf, mas tornar isso interessante para as novas gerações. Fazer com que isso se encaixe aos formatos e cultura pop atuais para ser alcançado pelo público que manterá vivo seu valor também para a atualidade.
Mas o que mais pode ser feito e quem mais tem responsabilidade nesse coletivo é uma pergunta que deveria se feita por todos que encaram o surf como parte da própria vida.
O surfista recreativo, por exemplo, pode assumir a responsabilidade de valorizar o local e consumir marcas que estimulem essa ponta da engrenagem. Procurar conhecer a história do pico onde surfa, valorizar um shaper local, tentar entender quem está do seu lado na água, quem foram os surfistas mais antigos. Enfim, sempre é possível buscar se inserir na cultura local ao invés de se deslocar mecanicamente de um grande centro com uma prancha de marca gringa fabricada no Brasil, parar na praia, surfar e cair fora.
Imagine que surpresa seria descobrir que o cara que surfa ao seu lado foi referência de surf para um dos ídolos no qual você se espelha hoje…
Há solução?
De forma prática, é possível garantir que isso impediria histórias como a de Pat Curren? Dada a complexidade que envolve a questão, não. Mas é certo que quanto mais pontos estiverem conscientes da sua responsabilidade, mais próximos estaremos de uma condição coerente com o que se prega na tão cultuada cultura surf. Do surfista comum ao surfista profissional, à mídia, às marcas, às organizações, ao poder público. Quanto mais gente envolvida, mais próximos estaremos de transferir a questão do campo moral para a ação.
No Brasil, iniciativas preocupadas em manter a memória viva são muitas. É o caso de museus de surf, como o de Santos e o de Cabo Frio; festivais como o Prancha Oca, e mesmo iniciativas bem locais. Como estas, existem muitas outras Brasil afora que não ultrapassam o conhecimento regional. É fundamental perceber, porém, que nenhuma delas nasceu sem os indivíduos que as idealizaram, desenvolveram, construíram e estão ou estiveram envolvidos na sua manutenção. Não é o surf, a federação, a marca, ou qualquer outra coisa que age. E sim, as pessoas.
Mas se até Matt Warshaw, na Califórnia, tem dificuldades para manter em funcionamento seu valioso trabalho na Encyclopedia of Surfing por falta de apoio, o que dirão as pessoas que batalham para manter viva a história em uma realidade de país subdesenvolvido como é o caso do Brasil? Sem incutir culpa, mas sim consciência do impacto das escolhas, todo mundo tem sua parcela de responsabilidade porque cada um é parte viva da cultura surf. Então, o jeito é buscar fazer as melhores escolhas com o que se tem à mão.
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