Quantas vezes você já pensou em treinar a mente para desenvolver seu surf? O treino mental é uma realidade na vida de alguns surfistas profissionais. Mas poucas vezes nos damos conta de que o surf pode se tornar ainda mais prazeroso quanto mais consciência situacional desenvolvemos. Seja lá qual for o nível de surf envolvido, é essa consciência que gera condições mentalmente mais favoráveis para apreciar a inconstância do mar, esse ambiente tão incerto quanto a vida.

É por isso que, neste episódio do podcast, eu converso com a neurocientista do Hospital Albert Einstein e surfista Elisa Kozasa sobre o surf como instrumento de autoconhecimento e o autoconhecimento como um instrumento no surf. Além de cientista e surfista, com direito a uma coleção de títulos que vai de faixa preta a PhD, Elisa treina foco e equilíbrio emocional de atletas como Filipe Toledo, Ian Gouveia e Samuel Pupo pela Personal Boards. 

Por aqui, a gente conversa sobre a relação entre corpo e mente no desenvolvimento das habilidades surfísticas. E também sobre como a neurociência e o surf se encontram de uma forma tão harmônica dentro e fora d´água em sua vida que ressoam nestas ondas sonoras perfeitas que ela transmite quando fala. 

Elisa e o surf

Foi se perdendo nas páginas da revista Fluir que Elisa Kozasa sentiu vontade de surfar. Morando em São Paulo, sem acesso a praia, a amigos surfistas ou a um contexto que a aproximasse do surf, o encontro tão desejado desde a adolescência acabou acontecendo depois dos 30. “Na verdade, a minha vida foi bem de nerd”, diz, rindo da própria descrição. Faixa preta quinto grau, Elisa também foi instrutora e árbitra de Aikido. Mas a arte marcial perdeu espaço quando a carreira de cientista passou a ocupar boa parte do seu tempo. Isso dá apenas uma pequena dimensão da sua personalidade. Tão plural quanto focada. E como isso entra em conjunção dentro de uma mesma pessoa? Só a neurociência deve ser capaz de explicar.

Desde que decidiu fazer aulas de surf numa piscina da academia que frequentava em São Paulo até aplicar a neurociência ao surf, foram mais de 15 anos. Nesse intervalo, entre as aulas na escola de surf da Riviera, treino, contemplação, surf trips e novas amizades com muita gente do meio, o surf tomou um espaço fundamental na sua vida. “Pra mim, o surf é felicidade. Não é a minha única felicidade, mas é uma das coisas que me deixa muito feliz”.

Talvez, por isso, tenha sido natural se perguntar que áreas do cérebro são trabalhadas enquanto surfa.

Retrato Eliza Kozasa

Elisa Kozasa | Foto: Arquivo pessoal

Surf e a neurociência

Há muito pouco disponível ainda na literatura acadêmica sobre surf e neurociência. Elisa não é a única que se interessa, mas certamente é uma das principais cientistas que está desenvolvendo um trabalho respeitável na área. Junto com a Personal Boards, ela tem desenvolvido um trabalho de treino mental em foco e equilíbrio emocional para surfistas de alta performance. Tudo isso com aplicação e observação de resultados em atletas da WSL. O que pode ser feito para melhorar a performance dos atletas enquanto surfam, quais tipos de treinamentos e como adequar ao conjunto multidisciplinar que envolve a rotina de um surfista profissional são questões em desenvolvimento. Muito ainda está por vir.

O trabalho iniciado com Filipe Toledo a partir de 2018 virou estudo de caso apresentado em congresso internacional para mostrar o impacto do treinamento mental na performance. Tudo isso, em um conjunto que soma talento do surfista, suporte do pai e treinador Ricardo Toledo e preparo físico com o coach Eduardo Takeuchi. Depois do difícil ano de 2017, com derrotas em primeiras baterias e até suspensão, Elisa foi chamada para reforçar a equipe. O conjunto dos esforços fizeram de 2018 e 2019 os melhores anos da carreira de Filipe até agora, com uma constância de resultados que o colocou em 3º e 4º lugares consecutivos no ranking mundial. A mudança de postura chegou a ser mencionada por locutores dos eventos.

Em 2020, ano em que as competições foram impactadas pela pandemia, os esforços de treinamento mental foram retomados com firmeza. Filipe e Coco Ho foram os campeões do recente evento realizado no Surf Ranch, e o comentário foi de que Filipe acabou desestabilizando Kelly Slater, que, além de dono da casa, é conhecido justamente pelos jogos mentais que desestabilizam emocionalmente seus oponentes.

Rotina mental

Elisa explica que o ser humano é uma unidade. Não é cérebro separado de músculo, da pele, das sensações. Por isso, quando se fala em treino mental é preciso pensar no conjunto e em como desenvolver uma rotina mental capaz de melhorar habilidade psicomotoras, tempo de resposta, tempo de reação. Evitar, por exemplo, que o surfista fique mentalmente preso a uma onda ruim e, assim, comprometa o resultado de uma bateria inteira. O treino mental, porém, não fica restrito à performance profissional. Elisa aponta o surf como ferramenta no tratamento de estresse ou sintomas de depressão e ansiedade, por exemplo. Ao mencionar o documentário Surfar por uma nova vida, que mostra o impacto do surf na vida de veteranos de guerra, questiona: “Se há algo de benéfico acontecendo ali, o que será que está acontecendo em termos psicológicos e na função cerebral para gerar uma recuperação do trauma?”

Surfar não é só estar em cima da prancha. O entorno é responsável por influenciar os sentidos, gerando um estado mais benéfico de bem-estar. Primeiro, a natureza, diz Elisa. Sol e mar. Você já está em um ambiente mais estimulante. Aí começam a chegar os amigos e se tem uma comunidade. Um ambiente convidativo faz muita diferença, em especial para as pessoas que estão mais isoladas. O benefício vai muito além do físico, e em muitas direções.

Estímulo e resposta

Elisa cita o psiquiatra Viktor Frankl ao dizer que, entre o estímulo e a resposta, existe a liberdade de escolha. Além de entender racionalmente, é fundamental internalizar o conceito como prática na vida. Um conceito útil, em especial, para as pessoas impulsivas. “Entre o estímulo emocional e a resposta que você vai dar, existe esse espaço em que você pode decidir como vai reagir emocionalmente. Isso é uma liberdade”, define.

Trata-se do espaço em que se pode respirar e observar melhor o ambiente. Isso é o que se chama de consciência situacional. A partir dela é possível extrair as melhores informações para uma tomada de decisão. “Esse é um dos pontos em que a gente pode ajudar o atleta e qualquer pessoa no seu dia a dia, na sua vida, nos seus grandes desafios. E o bonito da vida é poder utilizar essas possibilidades todas no nosso dia a dia, seja no surf ou qualquer outro momento”, diz.

“Se tenho escolha de reação, entendo que muito da minha vida está mais na minha mão do que na mão das outras pessoas”, completa. Para Elisa, se as pessoas conseguirem desenvolver isso, é possível realmente mudar o mundo, começando a transformar o seu próprio entorno.

Inconstâncias

Na visão de Elisa, conhecer o mar é uma vantagem. Isso porque a vida é tão incerta quanto o mar. “Entender como é o mar, que quem manda é ele, faz muita diferença. A gente vai se adaptando e constrói uma outra relação, tanto com a vida quanto com o mar”, ensina.

Meditação, yoga e todas essas práticas, chamadas contemplativas, são ferramentas no processo de treinamento mental. As formas são variadas, mas todas representam um processo. Não adianta, portanto, praticar hoje para ver o resultado amanhã. “Assim como o treinamento físico, também vamos ter uma rotina de prática mental. Isso começa fora da areia, mas também acontece na hora em que se coloca o pé na areia. Vai desde começar a prestar atenção no mar com uma outra qualidade, até perceber como você está, como está sua mente”, explica.

Segundo a neurocientista, familiarizar-se com sua própria mente é uma das melhores definições para meditação. Ela cita o big rider Carlos Burle como um dos grandes exemplos da importância de trabalhar com a mente no surf. “Há muitos anos ele vem praticando yoga até que aquilo passa a ser parte da sua natureza. É aí que realmente funciona”, observa. Ela chama atenção, porém, para casos que demandam trabalho psicoterapêutico. “Quando entra em questões de ansiedade muito grande, depressão ou algo mais grave, é um outro trabalho porque se trata de caso clínico”, ressalva.

No surf recreativo

Surfar cada vez melhor é um desejo natural, mas focar em metas de performance profissionais pode gerar frustração e criar um processo penoso. Para o surfista iniciante ou intermediário, uma das coisas mais importantes é desenvolver a apreciação do momento. “Se você foi para o mar e não está pegando onda, não faz mal. Tem tanta coisa para apreciar. Toma consciência. Desenvolver o senso de apreciação é uma das coisas mais bacanas que a gente pode fazer enquanto está surfando, mesmo não tendo talento”, considera.

Buscar manter sempre a mente de principiante também é uma dica. “Ir para cada experiência como se fosse a primeira vez, sem levar todas aquelas cargas e pressões”, explica. Ao invés de pensar que não consegue surfar de determinado jeito, ela indica ir para o mar para brincar, como uma criança. Isso, segundo Elisa, é ter mente de principiante, e é ela que proporciona o desenvolvimento da apreciação. “Degustar cada experiência no mar. É o que mais importa no fim da história toda. É o bem estar que você tem quando está lá”, diz.

Enfrentar o crowd também pode ser um desafio e tanto. Ainda mais quando se é mulher.

Medos

Para Elisa, é preciso buscar autodesenvolvimento e observar o crowd que você vai enfrentar. “O que eu aprendi entrando no mundo da arte marcial com 12 anos é que se você ficar só recuando, você não tem um espaço. É básico, é fisico. Quanto mais eu me retraio, mais as outras pessoas estão ocupando meu espaço até o ponto em que posso me sentir sufocada”, alerta. “Na medida em que você vai treinando e avançando, tem que colocar um pé a frente, outro pé a frente, e outro e outro. Até que você mostra: ´Olha, esse aqui é o meu espaço. Respeito seu espaço, mas esse é o meu espaço´”, descreve.

Ela teve a vantagem de praticar uma arte marcial com muitas alavancas. Ou seja, você usa muito a força do oponente no treinamento. Os treinos eram mistos, e, quando se falava em treinos somente para meninas, ela era contra. “Hoje as mulheres são a maior parte da força de trabalho, são maioria nas faculdades. É inegável a presença da mulher. Muitas delas são o arrimo da família. É a mulher entender esse poder. E também compreender que somos menores fisicamente, então o nosso surf vai ser diferente. Não melhor ou pior, mas diferente”, destaca. Quando vê os campeonatos femininos, chama sua atenção a beleza na linha. “E isso é autoconhecimento”, aponta.

Muito do que se chama infelicidade acontece quando eu acredito que tenho que ser ou fazer como o outro. Quando vou me conhecendo e percebendo que tenho uma forma de ser e de fazer que é a melhor dentro das minhas qualidades e características, isso é libertador.”

O tempo e a hora

Existe hora certa para começar a surfar? “Tudo indica que vamos viver por muito tempo. Se você tem 50 ou 60 anos, você vai passar mais 20 ou 30 sem ter sequer experimentado aquilo que você tanto sonhava?”

Há até um novo termo sendo usado para definir a tendência – gerontolescência. “Muitas pessoas hoje na fase dos 50 anos estão vivendo uma nova fase de adolescência. Terminaram um casamento e estão começando uma nova relação. A pessoa percebe que vai viver mais uns 40 anos, e vê que pode mudar de carreira, se quiser. Começa uma busca por coisas novas”, observa. Muitas pessoas começam a surfar na adolescência, por que não nessa nova fase? O benefícios são diversos. Em especial, diz Elisa, não ficar só. “Uma das coisas que mais mata as pessoas hoje é a solidão”, acrescenta.

E um dos maiores arrependimentos das pessoas é não terem feito aquilo que queriam. “Penso muito sobre isso. O momento da morte é um marco para você pensar de lá para antes. Você não sabe quando vai ser esse dia, mas você sabe como você gostaria de ter sido. Quem sou eu e o que eu realmente posso fazer, quais os meus potenciais, até onde eu posso chegar”, reflete. “Nosso tempo é limitado, então eu vou escolher ter uma vida que eu não gostaria, vou continuar sendo alguém que eu não sou? Dentro desse marco, o que eu vou escolher?”, questiona.

 

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