Eu costumo dizer que os podcasts da Flamboiar têm os melhores ouvintes do mundo. E isso não é retórica ou truque para agradar quem ouve. É que as conversas que a gente tem aqui na Flamboiar nunca acabam quando são levadas ao ar. Na verdade, geralmente elas estão só começando.

A prova disso é o episódio de hoje, com a Lara Félix, professora de Educação Física, mestra em Ciências do Movimento Humano e, claro, surfista. Ainda que a gente já tivesse se cruzado em pelo menos uma ocasião no passado, a gente não se conhecia. E foi através do outro podcast da Flamboiar, o Surf de Mesa, que eu tive um contato direto com a Lara pela primeira vez.

Ela já ouvia o Surf de Mesa e, no episódio 62, quando falamos sobre superstições no surf, a Lara mandou mensagem contando uma das histórias mais doidas que eu já ouvi quando a ideia é dar aquela mãozinha pra sorte melhorar as condições no surf. Depois disso, a Lara entrou nas conversas que rolam no grupo do Surf de Mesa no Telegram (quer fazer parte? Clica aqui) e eu fiquei curiosa demais com o que ela podia contar pra gente sobre como as nossas primeiras experiências na prática esportiva, muitas delas ocorridas nas aulas de Educação Física, podem estar definindo a forma como nos relacionamos com o surf hoje.

E, como eu não sou boba nem nada, no final da conversa ela ainda me conta nos mínimos detalhes a receita mágica que não só faz a série entrar quando o horizonte tá flat, como também ajuda a Lara a surfar melhor.

Quer saber também? Vem aí com a gente nessa conversa:

Graça e feminilidade

Imagine uma mulher sendo presa porque estava jogando futebol. Até a década de 70 existiu um decreto que proibia a prática do futebol pelas mulheres. O argumento, em outras palavras, se resumia na defesa da graça e da feminilidade.

Lara conta que, quando as mulheres foram se inserindo no esporte, no início do século passado, era comum para elas os esportes que de alguma forma representavam graça e elegância, tais como hipismo, tênis, etc. Com as mulheres pegando gosto pelos esportes, elas passaram a desviar do modelo feminino ideal à época. Mulheres descabeladas, suadas e competitivas começaram a incomodar a sociedade, que passou a criar restrições, até que na década de 40 foram restringidos para as mulheres vários esportes, entre eles, futebol, salto com vara, decatlo e várias outras modalidades do atletismo. A proibição do futebol só foi revogada em 1979, mas ficou de herança toda uma construção cultural que continua se refletindo nos comportamentos atuais.

O que é coeducação?

Quase todas as escolas hoje tem o ensino misto, com meninos e meninas nos mesmos ambientes, mas são raras (ou talvez inexistentes) as coeducativas. Coeducação remete à consciência da necessidade não só de colocar meninos e meninas em um mesmo ambiente, mas de dar a eles as mesmas oportunidades de acesso ao que é genuinamente do interesse de cada um. Quando se olha para o ensino da Educação Física, área específica da Lara, a ausência da coeducação talvez fique ainda mais evidente.

É comum ouvir que meninas são preguiçosas e meninos muito dispostos para as aulas de Educação Física. Segundo Lara, a tendência é acreditar nisso porque, ao primeiro olhar, os meninos estão mais dispostos à fazer aula, mas buscando mais a fundo, é preciso observar o que cada um é incentivado a fazer desde criança. “Que tipos de brinquedos são mais ofertados numa loja para as meninas e para os meninos? O que leva mais ao movimento e à vontade de se expor a riscos são brinquedos ditos masculinos, assim como os calçados masculinos são muito mais confortáveis do que os das meninas”, observa. Moral da história: meninas são menos incentivadas a se exporem ao risco. Consequência: elas chegam à educação física escolar se sentindo deslocadas, salvo algumas excessões. Lara é uma delas.

A diferença que faz o incentivo

Existe todo um problema estrutural enraizado no nosso sistema social, mas Lara reforça que existem também os micropoderes, onde tudo é passível de questionamento.

Não é uma coisa só que manda na gente. O micropoder pode estar em uma estrutura familiar que diz para uma menina que ela pode fazer esporte, que ela tem a mesma possibilidade de fazer as coisas que o irmão. Isso é um micropoder tão poderoso que faz com que essa menina desenvolva coisas que talvez ela não desenvolveria se não fosse dito, por mais óbvio que pareça”, aponta.

O mesmo acontece numa aula de Educação Física, onde o professor ou a professora decide colocar as meninas em posição de liderança, por exemplo. É assim que as aulas mistas se tornam coeducativas. É preciso criar essas possibilidades e oportunidades, na visão de Lara. Para ela mesma, aprender que tinha escolha em relação aos movimentos do seu corpo fez toda diferença. Filha de professora de Educação Física e de um pai que sempre a levava para o futebol, Lara define esse incentivo ao contato com o esporte como definidor da sua confiança para suas escolhas e experiências. “Tá, eu posso fazer. É tão simples. Se você tem um filho, é só dizer que ele pode fazer. É só não dizer que é coisa de menino ou coisa de menina”, explica.

Experiência motora

Os reflexos dos ideais femininos desde a infância refletem diretamente no desenvolvimento motor das meninas. Depois dos primeiros movimentos adquiridos depois do nascimento, como rolar, engatinhar e andar, se não há incentivo a continuar explorando as possibilidades de movimento, a experiência motora vai sendo travada em suas habilidades. É o que acontece com a maioria das meninas que não recebem estímulo ao risco. Assim, desaparecem algumas fases do desenvolvimento motor. Se as meninas deixam de fazer algumas coisas por terem a cobrança de um suposto comportamento ideal feminino, elas também deixam de treinar certas capacidades físicas.

Consequentemente, a falta de determinadas experiências motoras serão sentidas mais tarde, possivelmente percebidas primeiro nas aulas de Educação Física, por exemplo, onde elas tendem a chegar já se sentindo descoordenadas. Isso leva, naturalmente, ao deslocamento. Medo da bola, do contato, de se machucar. Isso também é ensinado. As meninas foram incentivadas a não ter essa capacidade física de força e agilidade para desviar de um contato mais violento, por exemplo, quando foram podadas pelo padrão tido como comportamento ideal feminino. “É a base motora que falta”, define Lara.

Voltando às aulas de Educação Física, a questão que fica é: A culpa é das meninas serem preguiçosas ou é da exposição social às possibilidades de corpo?

E o surf?

O surf envolve a maioria dessas habilidade motoras. “Se eu conseguir a base bem desenvolvida: coordenação motora, de equilíbrio, de força, de agilidade e de velocidade, eu vou conseguir fazer qualquer esporte. No surf, talvez precise de um pouco mais de velocidade, de potência e de equilíbrio. Mas se tenho uma base bem desenvolvida, tenho mais facilidade para desenvolver o que mais for necessário”, explica. Lara destaca o surf como um esporte completo em termos de valências físicas. Como é feito de situações lineares, exige praticamente todas as habilidades disponíveis em uma base motora bem fortalecida. E isso, segundo ela, não se para de treinar nunca.

Quem não tem, precisa resgatar as condições de desenvolver essa base. Não é difícil chegar à conclusão que, assim, a maioria das mulheres precisa correr atrás do prejuízo causado pela falta de incentivo à exposição ao risco lá nas primeiras fases de sua vida.

Educação Física não é recreio

Lara chama atenção para a diferença que a Educação Física faz na forma como nos relacionamos com o corpo. “Estamos falando de ensinar coisas que não são ensinadas numa academia. De movimento como meio, da relação com o corpo e não do movimento como um fim em si mesmo. Não quero ensinar futebol numa aula de educação física. Quero usar o futebol para falar de aspectos da cidadania”, explica.

No colégio em que dá aula, por exemplo, há a possibilidade de escolha da modalidade a ser trabalhada por cada aluno. E esse foi um terreno fértil para entender de onde surgem as escolhas de meninos e meninas. Para entender por que os meninos escolhem certa modalidades e os meninas escolhem outras, Lara teve como recorte as aulas de basquete, de futebol e de atividades físicas, onde se encaixam diversas atividades assemelhadas as de uma academia.

A escolha é livre

Mas o que acontece é que os meninos escolhem mais o futebol e as meninas mais as atividades físicas. No resultado da pesquisa, dois grupos se desenharam. O grupo 1 compreendia quem escolheu determinada modalidade porque gostava. No grupo 2, quem escolhia a modalidade que considerava menos pior, seja  por não serem bons com esportes de bola e por se considerarem desajeitados. A maioria das meninas está no grupo 2, das escolhas que geravam menores expectativas.

Os resultados permitem à Lara afirmar que grande parte dos meninos sabe bem o que quer e tem a liberdade de dizer o que quer jogar. Nenhum deles disse que tinha feito a escolha porque era ruim em tudo. Em compensação, a maioria das meninas caiu no grupo 2. Muitas meninas também escolheram o basquete e só uma escolheu o futebol. Mas a própria relação em que ela se colocava dentro do grupo de meninos, sendo a única menina, foi digna de nota. Ela levava para dentro do campo a ideia de ser mais fraca a ponto de não querer receber as bolas por medo do julgamento. “Era tenso para ela, e ela preferia apenas estar lá, ficar incentivando, correndo, e sentindo como se estivesse jogando futebol”, conta Lara.

O risco de errar

Ser a única menina em um grupo de 31 jogadores é uma escolha que exige coragem. A exposição ao erro talvez represente uma segunda coragem a tomar. Mulheres buscam um nível de perfeição maior devido ao medo de errar e, com isso, terem todo um esforço desmoralizado. Isso acontece porque o erro masculino sempre foi muito mais tolerado.

“No esporte também, e no surf, muito”, observa Lara. Ela mesma, uma menina que, em muitas das ocasiões, era a única entre os meninos. Participou de esportes tidos como masculinos desde muito nova. Futebol quando era criança, pentatlo moderno e depois o surf. Em todas as situações, se via como a única mulher no ambiente e sentia a pressão: se errasse, era por ser mulher, enquanto os meninos erravam o tempo todo de forma naturalizada. “Comecei a notar isso. Faz 12 anos que eu surfo e isso, de me jogar sem me importar se eu errar porque todo mundo erra, está fazendo sentido para mim só agora”, afirma.

A chave mudou quando caiu a ficha de que todos que estavam ao seu redor no outside aprenderam a surfar errando, caindo da prancha e levantando. A diferença era que muitos tiveram a oportunidade de fazer isso aos 10, 12 anos de idade. Lara, apesar de ter tido incentivo para fazer muitos esportes desde muito cedo, só chegou ao surf depois dos 20 anos e ressalta ainda o quanto o ideal masculino é explorado dentro dele. Isso não faz mal somente para as mulheres.

O que os homens também perdem?

Se a máxima equivocada “homem não chora” continua sendo dita ainda hoje, quantos homens vão se identificar com a liberdade de poder escolher chorar sem se sentirem fracos? Assim é também no esporte. Dança, ginástica rítmica, a própria turma de atividades físicas do colégio em que Lara dá aulas. Escolher algumas modalidades também para o homem exige coragem em função da possibilidade de sofrer julgamento. Os jovens de 16, 17 anos já enxergam mais isso hoje em dia, na visão de Lara. “Tem a ver com uma construção emocional, cultural, que leva a pensar dessa forma. Há uma crescente inserção de meninos nestas atividades. Conforme um vai, o outro se sente validado e também vai. Como acontece com as meninas no mar. Ao mesmo tempo em que estamos falando para as meninas que elas podem jogar futebol, surfar e fazer o que elas quiserem, também precisamos falar para os meninos que eles podem fazer balé, dança, etc.”

Em resumo, as escolhas que tomamos, sendo homens ou mulheres, podem não estar sendo tão livres quanto parecem. Mesmo quando há liberdade de escolher.

 

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Quer ouvir mais podcast de surf? Conheça o Surf de Mesa, podcast mais sincerão do universo surfístico, apresentado por Carolina Bridi, Junior Faria e Raphael Tognini.