De uns anos para cá, todo mundo deve ter percebido pipocar nas praias brasileiras movimentos de meninas e mulheres reunidas em grupos para encarar os mais variados desafios que habitam o outside. E aí estamos falando não só da inconstância e imprevisibilidade dos mares e das ondas, mas também dos mais variados bloqueios que podem surgir quando decidimos encarar aquela velha vontade de surfar.

Cada mulher, óbvio, tem sua história pessoal que faz do caminho até o surf mais ou menos difícil. Mas não há uma só que negue a realidade de que ser uma mulher nesse contexto traz sempre desafios além da clássica e almejada evolução surfística.

Eu curto passar pelos meus processos de aprendizado bem na miúda, se possível imperceptível, mas vejo este agrupamento como algo fundamental na retomada do espaço feminino no surf. Mulheres juntas, em grupo, têm mais força para derrubar estereótipos. Observando com um baita entusiasmo, decidi que este é um bom lugar para entender melhor como esses grupos se organizam pelo Brasil. A gente vive em um país tão grande e tão diverso, que eu duvido que cada um deles seja igual ao outro… Por isso, ao longo dos meses, VA surfar GINA vai conversar também com mulheres de diferentes grupos para entender como as diferenças do país também refletem nas diversas dinâmicas das mais variadas iniciativas.

Nesse episódio, eu converso com a Ale Bressan e a Luna Feldmann, da ElaSurf, de Florianópolis. Elas desenvolveram uma metodologia própria que usa o surf como instrumento de desenvolvimento pessoal para mulheres. Aqui você conhece um pouco mais sobre o trabalho e as mulheres da ElaSurf.

Olhar integral

Quando a estudante de Engenharia Alessandra Bressan começou a surfar, se incomodava com a falta de mulheres no mar. Mais ou menos na mesma época, em 2017, participou da Startup Weekend Women, um evento do Sebrae para estimular o empreendedorismo feminino. Foi lá que surgiu a ideia de montar um grupo de mulheres surfistas. Desde então, mais de 15 mulheres já participaram ativamente como integrantes do projeto. Logo no início, Ale percepção de que as mulheres buscavam algo além do surf, e uma pesquisa deu a visão das três questões principais: o medo, a falta de confiança e grupo de mulheres, ou seja, companhia feminina.

A partir dos três temas, a ideia era desenvolver um trabalho capaz de contemplar estas demandas. No primeiro evento de imersão, além do surf, teve yoga. Ali se percebeu o potencial do uso do surf como forma de desenvolvimento pessoal. Mas foi a partir do final de 2018, quando três psicólogas entraram no grupo, que Ale enxerga um grande momento de transformação da ElaSurf. O olhar mais cético e pragmático de uma futura engenheira ganhou companhia do olhar mais integral e sensível das novas parceiras. Ali, ela se deu conta de que haviam outras formas de evoluir no surf que não só a técnica.

O surf não é simplesmente cair no mar. É muito mais do que isso. Por isso, a gente precisa trabalhar de forma integral”, define.

Englobar o ser integral, incluindo questões mentais, emocionais e físicas, se tornou o diferencial da ElaSurf, hoje uma empresa liderada por três mulheres.

Emoções em uma única queda

Olhar para o mental e emocional é muito importante porque surfar não é só ficar em pé, observa Luna Feldmann, psicóloga e surfista há quatro anos. Em sua visão, para surfar é preciso enfrentar muitas barreiras internas diante do oceano, da imensidão e do descontrole. Ao observar aspectos psicológicos, é possível entender melhor a dinâmica global do surf. A ideia é que, trabalhando o emocional, amplie-se o potencial da mulher usando o surf como ferramenta.

O surf nos coloca diante de situações que a gente vive na vida, mas que no surf talvez acontecem de forma mais extrema. A gente vai passar por diversas emoções em uma única queda”, aponta.

Ansiedade antes da queda, vibração e felicidade no contato com o mar, medo diante de uma série maior, frustração por não conseguir fazer o que se propõe. Os sentimento vêm e vão de forma muito intensa durante o surf. E conseguir olhar de forma mais atenta para isso, segundo Luna, proporciona oportunidades de relacionar à situações da vida. “É muito gritante essa relação, e é possível fazer vários paralelos. Se a gente olha para aquele sentimento e consegue dar o clique no surf, muitas vezes acaba conseguindo dar esse clique na vida também e levar uma transformação na rotina, nas vivências, nas relações”, afirma.

Por isso, são frequentes as histórias de mulheres que passaram pelas imersões da ElaSurf e levaram transformações para a via. Como a mãe, por exemplo, que atribui à experiência na imersão uma melhoria na relação com o próprio filho.

 

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Principais demandas

  • O medo

Ale conta que desde 2017 percebe padrões se repetindo entre as mulheres que participam dos eventos. Um deles é a presença muito forte do medo. Para ela, o medo surge quando a mulher sente que pode não dar conta do recado. Não confiar que dá conta, por sua vez, está relacionado, muitas vezes, à dificuldade de errar.

A mulher tem a pressão de ser perfeita. É uma questão também social”, afirma. Por isso, a proposta na ElaSurf é de que as mulheres não só podem como devem aceitar o erro.

“Em cada imersão e treinamento, eu vejo a necessidade de desconstruir o erro, de fazer com que elas se divirtam com o erro porque o surf é feito de erro em 99% do tempo. Isso também na vida. O erro faz parte da nossa construção como indivíduo e reflete no surf. Quando a gente aceita, tudo fica mais leve. E o surf também”, define.

  • A vergonha

A vergonha de se expor também surge como demanda frequente. “É como se a gente estivesse sempre ´precisando´ se provar, provar que merece estar naquele lugar. Não que isso seja verdade, mas a gente carrega isso como crença. Se a gente expõe que está iniciando, a gente quebra essa crença. E, em grupo, a gente quebra isso juntas. A gente vai errar, vai se expor, mas juntas, tornando tudo muito mais leve diante da percepção de que todo mundo erra”, afirma Luna.

  • A comparação

É onde fica evidente uma terceira demanda muito forte: a comparação. “A gente se compara muito, e a gente compara o nosso surf com o surf masculino, com a performance mais agressiva de pessoas que já estão surfando há muito anos, que desde pequenas tiveram o estímulo corporal para o exercício físico, o que muitas mulheres não tiveram. Então a gente se compara o tempo todo com uma história e uma experiência totalmente diferentes da nossa. Isso é muito injusto e causa sofrimento emocional, uma dor de não ser boa o suficiente. E quem disse isso?”, questiona. O grupo, segundo ela, permite essa percepção de forma natural.

 

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Águas externas e internas

Para alcançar questões mais profundas, o formato proposto na ElaSurf é de imersões no surf e em si mesma a partir do surf. Muitas mulheres têm uma primeira experiência e voltam para outras imersões, pois grupos diferentes levam a vivências diferentes, que proporcionam a continuidade do desenvolvimento.

É sempre possível conhecer um pouco mais de si mesma ao encarar aspectos diferentes da experiência com o surf”, afirma.

Em 2020, elas decidiram não realizar imersões presenciais, as quais devem ser retomadas em 2021. Durante esse ano, a metodologia tem sido ampliada para o ambiente digital com objetivo de fazer um acompanhamento constante. Com isso, a partir do ano que vem a ideia é retomar as imersões presenciais como eventos pontuais, mas manter a presença virtual para também gerar constância no processo. “Um passo por dia junto com o grupo no ambiente digital”, explica Luna.

As imersões presenciais acontecem em Florianópolis, mas o público, em maioria, é de mulheres que viajam de São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba e Porto Alegre para participar dos eventos. Conhecer novas praias, sair da zona de conforto e sair do seu ambiente de rotina são alguns dos motivos que elas identificam como motivadores para estas mulheres, em maioria, iniciantes em busca de apoio para começar no esporte. “É como fazer uma surf trip”, diz.

A metodologia

A metodologia de trabalho é baseada nas práticas pessoais e formações das mulheres que estão à frente da ElaSurf. Psicologia, aromaterapia, yoga e educação física são algumas das disciplinas envolvidas. “Juntamos estes vários olhares para construir algo novo baseado no surf a partir da nossa experiência com a Ela. A partir dos eventos, observamos relações práticas com conhecimentos teóricos para construir a metodologia, que está em constante aprimoramento”, explica Luna.

Baseia-se em três grandes grupos: parte física e técnica do surf, voltada aos movimentos; foco grande na parte emocional de pré e pós prática; e o aspecto social na formação e dinâmica dos grupos. Duas mulheres da equipe interna, uma líder e uma auxiliar, acompanham o grupo em 100% do tempo de imersão. Luna geralmente coordena o grupo através do olhar mais acolhedor e Ale é quem geralmente fica nas questões mais práticas e logísticas. Enquanto outras profissionais parceiras atuam em partes do processo, como as professoras de surf, treinamento funcional conectado, práticas de yoga e respiração.

Atualmente, além de Ale e Luna, Gabriela Spilari, psicóloga, professora de yoga e surfista há mais de sete anos, também está no quadro fixo da ElaSurf. As professoras de surf Tati Favretto e Uxa Zucarell, assim como Mariana Albuquerque, educadora física certificada pelo Treinamento Conectado, são as colaboradoras que reforçam a equipe.

 

 

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