A última década foi marcada pela evolução de um fenômeno que tem impactado quase todos os segmentos profissionais de uma forma ou de outra. Estamos falando da cultura de influenciadores digitais. Quando ela encontra o universo do esporte profissional, a atividade-fim pode ser impactada de uma forma ainda mais determinante, visto que os resultados obtidos no esporte de alto rendimento dependem, muitas vezes, de milésimos. Qualquer desvio de foco pode fazer a diferença. E todos sabemos que manter uma presença digital toma tempo e exige dedicação. No caso do surfista profissional, que atua em um ambiente de julgamento marcado pela subjetividade, o impacto dessa cultura pode resultar em distorções estruturais que refletem nas próprias condições de atingir ou não a profissionalização.
Assim como assistimos ao processo de profissionalização do surfista na década de 80, estaríamos agora vivendo o processo de ´influencerização´ do surfista? Com a evolução galopante no uso das métricas de redes sociais como critério para conquistar o almejado patrocínio, teríamos chegado ao momento da história em que, sem ser um influencer, torna-se impossível, financeiramente falando, ser um surfista profissional? É possível que essa nova realidade da influência digital se sobreponha à forma estabelecida de surf profissional que conhecemos hoje? Estas são as perguntas que Junior Faria, Carolina Bridi e Raphael Tognini se fazem neste episódio do Surf de Mesa
O surfista como produto
A cultura dos influenciadores digitais transforma pessoas em produtos. No surf profissional, essa realidade já existia. O surfista sempre foi o seu próprio produto. Para uma carreira profissional no surf, o que se vende, tradicionalmente, é um misto de resultado e imagem. A novidade é que, agora, com as métricas da presença digital como balizador para a escolha do investimento das marcas, a imagem pode ter despontado com uma relevância desproporcionalmente superior.
Se o surfista profissional é seu próprio produto, hoje ele não consegue se vender somente pelo nível de surf. Se no passado existia veladamente a busca pelo “surfista que vende mais” sempre apoiada em padrões preconcebidos como critérios de escolha, hoje em dia o número de seguidores corrobora o preconceito com base em métricas. Talvez como em nenhum outro esporte, a imagem do atleta faça tanta diferença no seu desenvolvimento como acontece no surf.
Agora, isso foi elevado a tal importância pelo mercado, que o fato do atleta ser um influencer está se sobrepondo à sua própria habilidade, resultado ou performance dentro do mar. Trata-se de uma nova possibilidade de viver do surf, certamente, mas pode impactar diretamente na sustentação do surf profissional. Isso se torna um problema quando os esforços que envolvem uma boa performance de surf, por si só, não necessariamente garantem uma boa performance em métricas digitais. Ou o surfista tem o foco voltado a se tornar o melhor atleta, ou vai dispensar tempo fazendo posts e criando o famigerado conteúdo.
Os filtros sumiram
A influência digital é sinal dos tempos e não há o que fazer, senão tomar consciência de que uma nova realidade demanda adaptações. Até para organizar meios de não deixar que isso signifique um retrocesso em performance nas ondas. O surf demanda uma avaliação subjetiva na classificação de nível e qualidade. Pouca gente consegue desenvolver critérios suficientes para avaliar o que é um bom surfista tendo como ponto de partida apenas o desempenho na onda. Isso foi, historicamente, papel desempenhado por alguns personagens do segmento, como juízes de campeonatos e mídia especializada, por exemplo. Existiam filtros dentro do próprio segmento que criavam o funil, onde a qualidade do surf era critério predominante na maioria das vezes. A partir da performance provada, não há como negar que a imagem entrava como um segundo fator relevante no destino do surfista.
Se a condição de acesso e a performance eram a porta de entrada, a imagem definia se o caminho seria mais ou menos fácil dependendo dos padrões estéticos vigentes. A regra de prioridades era essa, pelo menos no surf masculino. Já no feminino, o peso da imagem sempre foi um dos grandes determinantes desde a era analógica. A realidade é que, se hoje os filtros do segmento ainda existem, perderam relevância diante da lógica predominante do número de seguidores, likes e compartilhamentos. É isso que denominamos´influencerização do surfista`.
E o freesurf?
Vale se perguntar se o surgimento do freesurf profissional como forma de subsistência do surfista vem na esteira desse fenômeno. Mas é fundamental pensar que, para se tornar um freesurfer, antes o surfista precisa ser percebido como referência de qualidade do surf. O caminho natural era conquistar essa prova de nível de performance através do funil das competições. Mas parece que, hoje em dia, já existe uma geração que vislumbra e almeja o freesurf como caminho direto, sem a necessidade de passar pelas competições como porta de entrada.
É realidade, hoje em dia, surfistas que não necessariamente são os melhores da sua geração em performance, mas que focam no crescimento dentro das redes sociais, acabam tendo mais visibilidade e, para critério comercial do mercado, tornam-se as melhores apostas.
É importante destacar que não se trata de certo ou errado. Não é errado ser um influencer do surf. Trata-se de uma nova possibilidade. E se o sonho sempre foi buscar viver do surf, cada um luta com o que tem a oferecer. A problemática acontece quando não há filtro, o que faz com que qualquer pessoa com o número certo de seguidores ache que alcançou o sucesso. Um sucesso, porém, financeiramente tão virtual quanto as métricas obtidas.
Alucinação coletiva
Ter determinado número de seguidores, ganhar umas peças de roupa e colar um adesivo na prancha pode parecer inofensivo, mas prejudica toda a estrutura do mercado. Essa distorção criada pela inexistência de filtros acaba acostumando mal um mercado que prefere pagar em produtos do que desembolsar investimento na formação de um atleta que vai transformar a marca patrocinadora em um verdadeiro objeto de desejo.
Toda essa dinâmica se transforma em uma verdadeira alucinação coletiva. A pessoa acha que surfa, o público acha que ela tem patrocínio, o seguidor acompanha uma pseudo referência e a marca acha que está fazendo um bom negócio. A realidade é que todas as pontas dessa cadeia estão confusas sobre o que é real e o que é virtual.
E o mais relevante dessa história é que ela resulta em muitos surfistas de alto rendimento, com currículo, resultados e surf no pé, mas sem condições de desenvolverem seu potencial. Os reflexos são inúmeros, inclusive um possível apagão de surfistas brasileiros nutrindo nossa necessidade de autoafirmação surfístico-mundial.
Qual a novidade?
Surfistas sempre foram formadores de opinião. São influenciadores natos ao longo de décadas. A novidade é que, hoje, aparentemente se busca um nicho para depois tentar virar o surfista influenciador daquele nicho. A ´influencerização´ é caminho natural. Desde que seja por uma influência sincera, que nasce da verdade pessoal do surfista. Negativo seria a construção de um personagem baseado em verdades virtuais sem a consistência da realidade.
Este talvez seja o resultado de uma conjuntura entre a geração de pessoas que cresceram querendo ter sua própria voz, seguindo seus sonhos e sendo reconhecidas por quem são, e um sistema que soube lucrar com a ingenuidade como característica comportamental predominante de toda uma geração. Em resumo, parece ser tudo que a gente sempre quis sendo usado contra a gente. haha.
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