Quando certa manhã Raphael Tognini acordou de sonhos californianos, encontrou-se no pico de sempre metamorfoseando num surfista insatisfeito. Quando viu, era a própria figura do desgosto mirando um mar mexido no quintal de casa, almejando ter nascido em Malibu. Peru já servia.
O saudosismo de surfar ondas mais fáceis, traduzido em um discreto retrogosto de tristeza, foi dividido com Junior Faria e Carolina Bridi. E, não poderia dar outra. Virou episódio do Surf de Mesa.
O que Rapha, assim como todo surfista, talvez esteja sentindo falta, é daquele previsível fator piscinesco. Os prazeres proporcionados por uma onda quebrando clássica, levantando da mesma forma, no mesmo lugar, e se desenvolvendo com o mesmo comportamento série após série. Ignorantemente idealizando: uma máquina natural. Em um resumo viável da realidade: ondas de point break e classe internacional. Sem arrebentação, fácil de entrar, abrindo e quebrando sempre no mesmo lugar.
Convenhamos que isso também pode ser um compreensível reflexo do momento em que vivemos, onde viagens internacionais se tornaram, além de pouco recomendadas, também um tanto mais salgadas. Algo que atinge diretamente a cultura onde o surf se desenvolveu, da viagem, de um mundo sem fronteiras, de sair sempre em busca de melhores ondas. Estamos falando das surf trips, praticamente um rito de passagem para qualquer surfista. Uma espécie de afirmação como surfista. O que, de certa forma, faz sentido, principalmente para o surfista brasileiro. Afinal, o que se evolui surfando um point break durante cinco ou seis dias dificilmente se evolui em um período bem mais longo no Brasil.
Mas não existem ondas boas no Brasil?
Existem. Muitas. E existem ondas que ainda são desconhecidas por muitos, verdadeiramente muitos surfistas. Mas é inegável dizer que, por aqui, temos o gargalo técnico descrito acima. É possível evoluir muito no Brasil no início. Algo que talvez em outro lugares não seja possível de forma tão rápida. Mas depois de um certo ponto, há estagnação porque a variedade de ambientes encontradas por aqui não proporciona todas as condições.
A partir de um determinado nível, existem desenvolvimentos acessíveis somente surfando todo tipo de onda, o que inclui point breaks e ondas maiores. Não é por acaso que quem quer correr o circuito mundial precisa viajar pelo mundo para treinar. Há coisas que não se consegue fazer surfando sempre no mesmo lugar. E nesse sentido, da diferença proporcionada pelas mudanças do ambiente, o surf é diferente da maioria dos esportes.
Veja por esse lado:
Dois campos de futebol, um em São Paulo e outro na Irlanda, podem até ter diferenças pontuais, mas em geral seguem um mesmo padrão. Já as ondas não são iguais nem em uma mesma cidade ou em uma mesma praia.
Cada praia e cada onda tem características diferentes que proporcionam sensações muito peculiares ao surfista, mesmo estando elas no mesmo oceano.
Por que subestimamos?
A realidade é que tanto as ondas quanto as surf trips pelo Brasil costumam ser subestimadas. Temos, em maioria, beach breaks, o que torna tudo menos previsível. Quando somamos a isso o padrão que acostumamos a assistir nos filmes de surf, que trazem sempre ondas clássicas sendo surfadas muito bem por surfistas profissionais, é tudo que precisamos para idealizar o nosso próprio surf. É assim que se cria um ambiente perfeito para classificar o que temos aqui como algo inferior. Enquanto a palavra certa é diferente. Temos ondas diferentes do padrão idealizado pela imagem midiaticamente construída.
Queremos surfar como se surfa em ondas de outros lugares e com designs de pranchas criados com base no funcionamento em ondas de outros lugares. Talvez isso comece a mudar se houver uma maior produção de grandes filmes de surf feitos em mares brasileiros mostrando o modo de surfar bem também nas ondas brasileiras.
Surf trips nacionais
O brasileiro, em maioria, tem a ideia de que só é uma verdadeira surf trip, se for para fora o Brasil. E o que se percebe agora, em tempos de viagens internacionais menos abundantes, é a tendência de ressignificar o que é, realmente, uma surf trip.
De repente uma viagem que só tinha valor se fosse para picos internacionais passou a ganhar novos significados.
A exploração de lugares mais próximos e valorização das ondas nacionais passou a ser uma necessidade. Na falta do grande acontecimento super planejado em um momento do ano, a galera está se abrindo às possibilidades nacionais com um novo olhar. Buscando descobrir o que existe no Brasil e se surpreendendo. Enquanto a surf trip internacional é a única vista como realmente almejada, os picos que merecem ser almejados veementemente pelos brasileiros acabam ficando totalmente fora do radar.
Afinal, qual a diferença?
Quando se considera o mundo todo e ondas de classe global, clássicas, realmente há lugares que são muito melhores que o Brasil. Mas de forma geral, o Brasil tem muita onda e condições que não são tão valorizadas quanto deveriam.
A primeira delas é consistência o ano todo, o que não acontece na maioria dos point breaks, que funcionam por temporadas.
Isso significa que fora da temporada de ondas, há longos períodos em que o swell não entra e a máquina de ondas clássicas desliga, paralisando por completo qualquer condição mediana.
No Brasil, por sua vez, existem longos períodos de condições medianas, e poucos momentos de mar clássico. De um ponto de vista geral, no Brasil temos beach breaks, e existem ondas de meio a um metro constantemente, fazendo com que dificilmente a costa fique flat por longos períodos. Em algum lugar, sempre vai ter uma ondinha para o surf nosso de cada dia. Isso significa, por outro lado, que a condição clássica acontece mais raramente e com muito menos previsibilidade do que nos point breaks.
Dores e delícias das ondas do Brasil
Imagine que você nasceu no oeste da Austrália. North Point, Margaret River, The Box. Sim, altas ondas. Mas para ser surfista por lá, você precisa ir além. Encarar água gelada o ano inteiro, tubarão e andar em pedras toda vez que vai pegar onda. Qualquer sessão de surf é uma missão. No Brasil, se sobrar uma horinha no fim do dia, é só pegar a prancha, entrar rapidinho, pegar um ondinhas sem grandes preocupações e ir embora feliz.
Entendemos essa praticidade de pegar onda no Brasil como algo natural, mas trata-se de um grande facilitador.
Quanto às ondas em si, é sim muito mais fácil surfar onda perfeita e previsível. Mas veja por outro lado: Quando você aprendeu a surfar e acostumou com as ondas difíceis, pegar uma onda perfeita, que quebra mais ou menos do mesmo jeito, vai elevar o surf a outro nível. Um exemplo? Os brasileiros no tour. Ondas do WQS são, tradicionalmente, as ondas imperfeitas do circuito mundial. Pelo óbvio, talvez isso explique, em partes, o domínio que os brasileiros da geração Brazilian Storm conquistaram no tour.
A verdadeira surf trip
Uma grande surf trip não é feita necessariamente das ondas, do que você vai encontrar no lugar e das manobras que vai conseguir fazer. O que torna qualquer surf trip em uma grande surf trip é a mágica que acontece quando você passa um tempo se preocupando só em pegar onda. Ter o surf como única preocupação do dia, da hora em que acorda até a hora de dormir, é o que faz uma verdadeira surf trip.
E, óbvio, aquela sensação de aventura que faz todo surfista, tolo que é, achar que é um desbravador do mundo em plena missão.
Tem coisa melhor para se sentir sortudo e especial?
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