Diretor de marcas André Jório mostra como o rearranjo de toda a cadeia do surfwear pode transformar a forma como consumimos o surf

Se você tem saudades de quando ser surfista era sinônimo de liberdade de expressão, autenticidade e contracultura, talvez esteja aqui uma boa notícia em meio à pandemia. É possível que o momento atual e a crise no surf proporcionem as condições exatas de pressão e temperatura para reativar um ser vivo que anda adormecido: o surfista que fala o que pensa e veste a camisa na qual acredita. Que não vende sua voz por uma punhado de roupas e um adesivo no bico. Mas que encontra forma de viver um ideal justamente emprestando sua verdadeira voz para marcas que dependem disso para se tornarem objetos de desejo.

Foi assim, com fé na volta do surfista anti-establishment que quer se libertar do padrão, que terminei a conversa que tive com André Jório, estrategista de marca, especialista multi-canal e diretor das marcas Redley e Kenner no grupo S2holding.

Não vai ter mais espaço para quem está em cima do muro,

disse ele, prevendo uma possível dança das cadeiras porque será preciso vestir a camisa daquilo que se acredita para passar uma mensagem verdadeira a um público consumidor muito mais sensível à percepção de realidade. Estaria o marketing de oportunidade com os dias contados à medida em que se forja um novo paradigma, o qual virá, segundo Jório, com o novo normal pós reabertura das portas. Quando será possível às marcas mensurar impactos de forma mais plausível e refazer estratégias com energia somente comparável à de abertura de um novo negócio.

Partindo de uma análise que vai muito além do que está executando na companhia em que trabalha, Jório trouxe bagagem de suas consultorias para dar uma noção do que está acontecendo neste momento no mercado de varejo de moda e, mais especificamente, no nicho do surfwear, ainda mais sensível aos impactos da crise. “Lojista, fornecedor, representante, cliente, marca. Isso precisa ser refeito porque, se as pessoas não colaborarem dentro do processo, elas não vão sobreviver. Vai ser simples assim”, avisa. Leia a entrevista completa:

flamboiar: Quais os impactos que já estão sendo sentidos pelo mercado de surfwear em relação à pandemia de coronavírus?

andré jório: O que está acontecendo no mundo hoje está impactando demais a vida das pessoas e, por consequência, os negócios. Eu lido muito com o pequeno varejo, o famoso revendedor autorizado, lojista multimarca e franqueado, que tem uma franquia, uma ou duas lojas. E é este, o varejo na ponta, que mais está sofrendo. Ainda mais o varejo de roupa. O brasileiro e o mercado são muito frágeis. Não têm planejamento. Não há condições de ficar um mês parado sem produzir porque a maioria dos negócios faz a venda de hoje para pagar a duplicata de amanhã.

Quando falamos de alguns nichos, como streetwear, surfshops, esse mercado é mais sensível ainda. O impacto é muito maior do que se pode imaginar.

Não tem como mensurar agora porque o mundo está, de certa forma, congelado em casa, fazendo a quarentena. Mas quando a vida voltar ao normal, ou seja, ao novo normal, haverá um novo paradigma. E aí sim, para mensurar o tamanho do impacto, será preciso refazer todos os planejamentos que existem dentro das empresas. Renegociação com fornecedor, renegociação de tabela de preço, renegociação de plano de sortimento, de mix. Todos os empresários precisarão rever todos os seus conceitos para minimizar esse impacto quando houver a oportunidade de abrir a porta novamente.

Hoje, não dá para dizer que o impacto é x ou y, e dificilmente se pode dizer o que vai acontecer. Só vamos conseguir mensurar isso depois de abrir as portas e entender qual vai ser o tamanho do retorno, o patamar de vendas. Vou fazer uma conta simples: antes, se uma loja vendia em média R$100 mil por mês, ela vai teoricamente voltar num patamar 50% a 60% menor de vendas. As pessoas não vão voltar comprando alucinadamente e nem comprando como antes porque vai haver um novo paradigma. Aí sim é que vamos entender e conseguir mensurar o impacto de tudo isso que está acontecendo na nossa vida.

flamboiar: Se não há condições de ficar um mês parado e já estamos em quarentena há algumas semanas, o que tem sido implantado para socorrer o período que já passou?

a.j.: As medidas para conseguir reduzir esses impactos acontecem em todas as esferas. Você tem que olhar para dentro de casa e usar todos os mecanismos disponíveis. Nesse momento, acordo às 7h para me preparar para as reuniões diárias e às 9h tenho as primeiras reuniões de comitê de crise. Tenho feito em torno de 15 videoconferências através de todas as ferramentas virtuais disponíveis. São muitas salas de fórum com lideranças e diretorias porque é como se a gente estivesse iniciando um negócio novo. Falei ontem para os lojistas: imagine que você vai abrir o seu negócio. Não vai reinaugurar, não vai abrir de novo. É a energia de abrir um novo negócio. Ou seja, fazer todo aquele estudo, planejamento com todo aquele cuidado.

Eu estou revendo todo meu plano de meta, todo meu plano de compra, todo meu time no sentido de treinamento porque esse é o momento de se preparar e implementar todas as medidas necessárias para o novo começo. Medidas que vão do planejamento estratégico ao planejamento financeiro e comercial. Qual o seu plano de ataque e qual o seu plano de defesa? É preciso ter esses dois planos para ter um retorno com mais gás e eficiência.

flamboiar: Já estão ocorrendo cortes de salários e demissões?

a.j.: Isso depende muito de cada companhia. Na qual eu trabalho, isso não está acontecendo porque é uma companhia um pouco mais musculosa, uma companhia grande. Até porque o governo está subsidiando a folha de pagamento. Para quem consegue acessar, ou seja, quem está com tudo formalizado certinho, existem recursos que estão entrando do governo, apesar de toda burocracia e dificuldade. E o bom é que, se a empresa utilizar esse recurso do governo para subsidiar sua folha de pagamento, precisa garantir estabilidade de três meses para o funcionário. Então, há um movimento grande de não demissão no segmento de moda porque muitas empresas estão conseguindo este recurso. Neste ponto, acredito que o impacto poderia ser muito maior diante de um problema tão grande quanto esse que estamos enfrentando.

Na minha empresa, o que estamos vivendo é outro tipo de reforma: estrutural, no plano estratégico e na jornada de trabalho. Mas temos feito um trabalho brilhante para manter os postos de trabalho. Isso é um desafio colossal de cada companhia para fazer a roda girar, e vai depender muito da natureza de cada negócio. Cada empresário vai ter que readequar à sua demanda, readequar o seu negocio ao planejamento de acordo com o que acredita que vai acontecer quando ele voltar.

flamboiar: Baseado no que temos até agora, o impacto chegará muito rapidamente aos patrocínios e atletas das marcas de surf?

a.j.: Indo um pouco além da questão do patrocínio de atleta, vou falar do marketing no geral, que vai ter uma missão muito diferente e precisar de uma visão transformacional. Os executivos de marketing vão sim rever todo o seu planejamento. O orçamento de marketing é o primeiro que vai sofrer. E quando falamos diretamente de patrocínio e atletas, o marketing tem um papel fundamental. Vai depender muito de como é esse atleta, como ele trabalha, qual é a parceria que ele tem com a marca e a marca com ele. Acredito que vão mudar as relações. Assim como vão mudar as relações de trabalho, vão mudar também as questões de comunicação.

As pessoas vão estar mais sensíveis, mais humanas, vão querer estar muito ligadas ao atleta que tem uma relação com a sua comunidade, por exemplo. Isso vai ter bastante resultado para o todo. É o grande ciclo da prosperidade. É importante para a marca, é importante para o atleta, é importante para a comunidade. As pessoas agora vão ter que pensar no ciclo completo. Não vai dar mais para pensar num simples patrocínio, numa relação apenas comercial. Te dou x e você usa minha marca… Não! Vai ter muito mais do que isso. Vamos fazer uma ação social juntos. A marca precisará ter um papel diferente nesse cenário. A forma de fazer vai mudar muito. E, principalmente, precisa ser de verdade.

flamboiar: Pois é, o discurso sempre foi muito voltado a isso. Agora as empresas vão precisar fazer de verdade o que antes só falavam que faziam?

a.j.: É… Perfeito! Porque o consumidor está muito sensível. Essa sensibilidade gera um aumento de percepção para o ser humano. Então, tudo que as empresas falavam que iam fazer, que era bonito fazer, precisará ser feito. Muitas empresas usavam isso como marketing de oportunidade, mas, de verdade, poucas faziam. Tanto que agora, com essa nova sensibilidade do consumidor, vai precisar ser muito genuíno, ser de verdade. Eu sou apaixonado pelo surf, pelo mar, pela natureza. É um esporte muito ligado à ecologia, à sustentabilidade. Tanto é que o surf transcende o próprio mercado de surfwear, com campanhas de produtos que querem se vincular ao surf. O refrigerante quer se vincular ao surf, o material de limpeza quer se vincular ao surf… Isso porque o surf tem essa energia da ecologia, do mar, da natureza.

Toda a comunidade vai estar pensando diferente e as marcas vão ter que, de verdade, fazer o que muitas falavam bastante mas faziam pouco. O consumidor, o cliente, nós, enquanto seres humanos, queremos fazer parte de uma coisa muito bacana. Queremos participar de algo grandioso. Várias pesquisas mostram que os consumidores acreditam mais nas marcas do que nos governos. O quão grandioso é isso? Cada marca precisa fazer o seu melhor de uma forma genuína. Isso tende a fazer com que a cadeia toda do ciclo produtivo ganhe porque vai melhorar a questão da sustentabilidade, das relações entre as pessoas e da relação entre a cadeia de fornecimento.

Lojista, fornecedor, representante, cliente, marca. Isso precisa ser refeito e vai melhorar muito porque, se as pessoas não se abraçarem, se as pessoas não derem as mãos, se as pessoas não colaborarem dentro do processo, elas não vão sobreviver. Vai ser simples assim.

O que era muito mercantil entre o fornecedor e a marca, a marca e o lojista, o lojista e o representante, vai precisar ser parceria, elo, verdade. Tem uma frase que eu gosto muito: “Colaborar e cooperar é muito melhor que competir”. Vamos entrar numa era de colaboração. As pessoas vão colaborar umas com as outras. E não estou falando de filantropia, não. Estou falando que amar dá lucro. Estou falando que as pessoas vão buscar o lucro, mas de uma forma diferente porque vai nascer um novo paradigma.

flamboiar: É comum ouvir surfistas profissionais usando a palavra “ajuda” para se referir ao patrocínio, como se não fosse de fato uma troca, enquanto o atleta também ajuda a marca a vender mais. Sempre existiu essa coisa da ponta mais fraca, como se a marca estivesse fazendo um favor. Você acha possível mudar essa mentalidade a partir do rearranjo que a crise está impondo?

a.j.: A minha opinião é que vai mudar. Não tem como não mudar. Tenho escutado muita gente falando que quer voltar logo ao normal. Não vai ter mais normal. O novo normal é o novo paradigma. Vai existir uma nova forma de se negociar. Uma nova forma de se relacionar. E nessa nova forma, a verdade vira vedete. A sensibilidade vira vedete. O atleta é um embaixador do negócio, é um expoente do negócio. Esse embaixador tem uma alta responsabilidade. E é uma responsabilidade dividida entre marca e atleta. Os embaixadores do negócio vão precisar estar mais engajados.

As pessoas confundem rede social com mídia social. A rede social somos nós e com quem a gente se envolve. É preciso levantar bandeiras de uma forma muito mais amorosa, muito mais verdadeira, muito mais leal. E a marca também vai ter que ser muito mais leal à ele.

A marca vai ter que abraçar muito mais que antes, do que aquela coisa efêmera de um contrato puro e simples que depende muito da performance.

Fica aquela adrenalina de ter que performar… Acredito que o peso maior ficará no engajamento do profissional com a parceria da marca e a marca com o profissional.

Acredito que a gente vai se surpreender muito com o que vai acontecer porque o consumidor não vai mais aceitar comprar de uma marca que não o represente. Antes até comprava. Na hora de responder a pesquisa ele dizia que não, mas no dia a dia comprava sim. Daqui para frente, no dia a dia o comércio local vai ser muito valorizado. O feito no Brasil vai ser muito valorizado. Muita coisa bacana vai acontecer em relação ao comportamento de consumo, e esse comportamento vai ditar o mercado de forma drástica porque o varejo local, a loja do bairro, a relação que você tem com a sua comunidade… esse elo vai se fortalecer muito.

flamboiar: A maioria dos surfistas profissionais hoje prefere não se posicionar em relação a quase nenhum assunto, nem no surf e nem fora do surf. O desejado pelas marcas então vai o oposto disso? Quem tiver consciência da necessidade de se posicionar mais claramente, sai dessa crise com alguma vantagem?

a.j.: As marcas vão estar procurando personalidade, autenticidade e muita verdade. Não vai ter mais espaço para quem está em cima do muro. Não vai ter mais espaço para o rostinho bonito. Os atributos e a relação que a marca vai procurar num atleta vão mudar. É o posicionamento que vai fazer a diferença, principalmente o engajamento.

A relação entre marca e atleta (ou marca e artista, marca e celebridade) sempre foi conturbada justamente porque sempre foi mercantil. Eu tiro as minhas fotos aqui, eu faço a minha campanha, eu uso a tua roupa, e ponto. Agora, isso não vai mais funcionar. O diferencial vai ser uma coisa chamada engajamento. Vontade de usar aquilo, vontade de falar da marca. E para isso acontecer, a marca tem que ter os mesmos princípios que o dele. Isso vai ter que estar muito alinhado porque ele vai ser o porta-voz de uma forma genuína. Vai ter uma dança das cadeiras aí porque as pessoas vão precisar vestir a camisa daquilo que acreditam de verdade para passar a mensagem verdadeira.

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André Jório também participou do podcast SURF ZINE da Flamboiar. Ouça o episódio que traz as últimas notícias sobre o impacto da crise nas marcas de surf no Brasil e no mundo: