Chegamos ao 100º Surf de Mesa. Gravado na sexta passada, este episódio especial fechou uma semana marcada pela perda de um amigo, ao qual se dedicam as reflexões que motivaram o tema da conversa: o senso de comunidade do surf.
Nosso primeiro episódio, veiculado em janeiro de 2019, foi ao ar quando o mundo era completamente outro. Tivemos, por exemplo, Jessé Mendes em um dos primeiros episódios, logo após ter sido campeão da Triple Crown. No ano seguinte à estreia, a Triple Crown já nem aconteceu. Sequer tivemos um campeão mundial. Quem tinha 16 anos, agora é maior de idade. Um moleque que estava na escola, agora já não está mais. Ouvintes mudaram de cidade, de país, de emprego, de profissão, de relacionamento, ganharam e perderam a presença de pessoas importantes na vida.
Quanto o mundo mudou em dois anos? Quanto as pessoas que ouvem esse podcast mudaram em dois anos? E quanto Junior Faria, Carol Bridi e Rapha Tognini também mudaram nesse tempo?
Muitas coisas daquele momento já não se aplicam à realidade atual porque estamos vivendo rápidas transformações sociais e pessoais. Todo mundo, além do surf, mudou. Por isso, o Surf de Mesa, as reflexões contidas nos seus episódios e até as intuitivas escolhas dos temas nestas 100 edições podem ser analisados como a fotografia da passagem desse tempo no mundo do surf brasileiro.
Paddle out: um ritual de comunidade
Se você ainda não fez parte de um, certamente você já viu imagens de paddle out. A cerimônia em que qurfistas se reúnem em um grande círculo no mar em memória e homenagem a alguém que morreu. No dia em que aconteceu o paddle out para Felipe Arias, criador da Lar Mar e grande amigo da Flamboiar, foi inevitável não falar sobre o senso de comunidade gerado pelas relações que o surf proporciona.
O paddle out abraça a temporalidade de uma vida individual entre família, amigos e comunidade dentro da infinidade e eternidade do oceano. (…) Comemora e reconhece a condição humana da mortalidade num ritual baseado na natureza, num processo altamente físico e afetivo”.
Esta é a conclusão a que chegou um estudo científico de 2018 realizado pela Escola de Humanidades, Línguas e Ciências Sociais da universidade australiana Griffith. Um ritual, com provável origem havaiana, dedicado a compartilhar entre um grupo de pessoas o profundo sentimento da ausência a partir da finitude de uma vida com a intenção simbólica de entregá-la à infinitude representada pelo mar.
Foi o paddle out e as memórias que decorreram da sua perda que, ao longo de toda aquela semana, que motivou esse tema. Entendemos que Felipe, um entusiasta do surf e da vida, só foi capaz de aglutinar talentos, amigos e verdadeiros parceiros ao seu redor porque era uma expressão plena do senso de comunidade do surf, se doando e valorizando o que havia de melhor nos outros.
Suas ideias e ações práticas entendiam que o surf só pode se desenvolver com sustentabilidade se todas as pontas da engrenagem desse universo girarem juntas. Não é com apenas uma delas se beneficiando, que o surf, este fenômeno social e cultural condensado em um microcosmo que hoje reflete o melhor (e também o pior) da sociedade, se sustenta.
Felipe primeiro criou um perfil de Instagram, depois fez camisetas, de repente a marca era sinônimo de eventos aguardados por uma galera, até que a Lar Mar se tornou um espaço localizado no miolo de São Paulo. Juntava loja com uma curadoria impecável de marcas e criadores em menor escala, bar, restaurante, arte e o encontro de quem sentia falta da praia em plena cidade fervida. Tudo isso com direito a toneladas de areia vinda diretamente da praia e uma sala de shape que colocava o shaper em posição de destaque.
As fábricas de prancha
Como um apaixonado pelo universo do surf, queria dar acesso a essa paixão a quem almejava ao mesmo tempo em que mantinha a capacidade de valorizar quem realmente o constrói. Shapers, artistas do surf e surfistas profissionais misturavam-se a um público de fora e eram valorizados com destaque. Era uma porta de entrada a quem depois quisesse se aprofundar no que realmente acontece na base que permite a realização do surf – as pessoas que vivem dele. A presença de uma sala de shape, desenvolvida no espaço e capitaneada pelo shaper Neco Carbone, não são por acaso. Fábricas de pranchas têm uma função catalisadora desse senso de comunidade tão bem compreendido pelo Felipe.
São muito mais do que locais onde se fabricam equipamentos. São lugares onde os surfistas das mais variadas atividades se encontram fora da praia.
Lugar de encontro, de passagem. As pessoas vão para a fábrica nem sempre para encomendar uma prancha nova, mas também para encontrar pessoas, conversar, contar histórias, trocar ideia. Por ser um ambiente diferente da praia, a fábrica proporciona uma relação também diferente da que as pessoas vivem no mar.
Se a praia é pública e permite a disputa, a fábrica é um espaço que aproxima, que agrega.
No sentido literal da palavra indústria, as compras online e as terceirizações têm impactado a existência das fábricas como esse ambiente de encontro, formação e intensificação do senso de comunidade. Hoje, grandes marcas têm processos de fabricação espalhados. Mas a troca de ideias e informações, que é base para a construção das pranchas ideais para determinada comunidade, onda e localidade, vive onde o shaper designer da marca está. Quem trabalha ali além do shaper também é surfista e traz conhecidos e amigos. A circulação só aumenta, nutrindo uma troca fundamental para a sustentabilidade do surf fora do espaço aquático.
Esse senso de comunidade que faz girar em um só lugar personagens motivados por um mesmo sentimento e propósito se comprova no fato de que as fábricas de pranchas contêm semelhanças profundas de características estruturais e comportamentais que vencem até mesmo os abismos culturais e econômicos de cada país. Trata-se de um pertencimento capaz de se reproduzir em escala global.
O senso de comunidade pode se perder?
As transformações sociais, culturais, econômicas, tecnológicas e estruturais de ordem global que vivemos impedem que o senso de comunidade se realize de maneira idêntica ao que acontecia no passado. Na medida em que uma população maior passa a se interessar e entender que pode praticar o surf, há um intervalo de tempo e espaço até que estas duas realidades se encontrem. Pode parecer estranha a possibilidade de frequentar um ambiente onde ocorrem trocas comerciais sem necessariamente fazer uma visita com a intenção-fim condizente a esse caráter. Para nem todo mundo parece natural que uma fábrica possa ser também um ambiente de encontro pelo puro prazer do compartilhamento da experiência no surf.
O ser humano é adaptável, e diante de rotinas cada vez mais preenchidas por estímulos tecnológicos, o comportamento natural passa, inconscientemente, a reduzir o encontro como elemento prioritário das atividades humanas. A tecnologia facilita transações, o que não impede que o encontro seja essencial para nutrir elementos e experiências da nossa existência humana. Faça sua compra online, mas não deixe de ver onde é fabricado se a realidade do surf é uma das poucas que ainda proporciona essa possibilidade. (Aqui cabe um adendo: também é verdade que, hoje em dia, nem toda fábrica de prancha continua existindo com esta mesma tradição.)
Acolhimento, interesse e cuidado genuíno com o outro. Isso é comunidade. Uma teoria defende que isso só é possível em grupos de até 100 pessoas. A partir daí, a capacidade de cooperação vai se diluindo. Talvez seja por esse motivo que o surf, no momento em que se torna uma grande indústria, perde a plenitude do seu sendo de comunidade. Quando há massificação da atividade e acirramento das possibilidades, esse entendimento da lida social sofre mutações orgânicas a partir de novos pontos de vista.
O famoso espírito aloha
Aloha. Quantas vezes você já disse essa palavra sem se dar conta do que estava invocando e se realmente tem tido moral para usá-la? Ela resume os valores que constroem esse senso de comunidade. Amor, compaixão, empatia. Mais que uma saudação, é o ato de compartilhar boas energias. Uma palavra da cultura polinésia que não nasceu do surf em si, mas se perpetuou ao longo do tempo dentro dele. As pessoas sabiam que precisavam umas das outras para sobreviverem.
Nesse sentido, o problema não é que o surf cresceu e se tornou indústria. O problema talvez seja o crescimento com oportunidades centralizadas. Essa centralização, assim como o protecionismo e o preconceito com os novos interessados, infelizmente tem sido a toada do surf como fenômeno social no nosso tempo.
Hoje, é comum que um surfista veja outro mais como potencial concorrente do que como potencial amigo. A criação de pequenas células, ou comunidades, onde cada surfista consiga se encaixar com o que se sente bem diante de uma multiplicidade de expressões surfísticas talvez seja a trilha para a autorregulação de um ambiente que está em vias de superlotação.
Quando há mais indivíduos do que o espaço é capaz de atender, a competitividade e a agressividade são resultantes naturais no espírito coletivo. É o que acontece hoje no surf e na sociedade como um todo. O senso de comunidade é inversamente proporcional ao senso de urgência. É mais fácil ser generoso num lineup quase vazio e de ondas perfeitas do que num beach break mexido de ondas pequenas com outros 100 surfistas.
Por isso, se você é defensor ferrenho da dita “essência do surf”, mas amaldiçoa a quantidade de gente que foi atraída pelo seu mesmo objetivo, talvez esteja ignorando justamente a base dele. Cabe a cada surfista, independente das condições, praticar essa essência para continuar garantindo que ela exista.
Não é gente nova e múltiplos perfis descobrindo o valor existencial do surf, ou as amarras que um programa olímpico pode representar à modalidade em tese vinculada à liberdade, que ameaçam essa essência. O espírito aloha, afinal, passa longe da exclusão. A perpetuidade do senso de comunidade também depende da sua disposição para acolher o novo, adaptando a sua comunidade para todos terem direito a amar o que você também ama.
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