James Joyce em Ulysses escreveu:

Qualquer objeto olhado intensamente pode se tornar a via de acesso aos deuses.

Essa coluna/série/qualquer coisa é basicamente sobre isso. O tudo que pode se encontrar no quase nada. A prancha velha e esquecida que pode fazer da sua queda a mais prazerosa em tempos… O surf sozinho nas primeiras horas da manhã que te leva para lugares bem mais agradáveis da sua cabeça… Uma sessão com amigos que fazem com que o quintal de casa pareça uma surf trip épica.

Em tempos tão frenéticos e conturbados, é um presente poder mergulhar por alguns instantes num mundo de poucas responsabilidades e grandes devaneios.

Surf de qualidade (dependendo do pontos de vista), ondas maneiras (dependendo da sua fissura) e pessoas incríveis (não ouse pensar outra coisa dos nossos amigos)…

Esse negócio aqui é sobre tudo isso.

Ou não… Pode ser só VIAGEM MINHA.

Para essa primeira jornada rumo ao mais que conhecido, duas figuras extremamente presentes na minha vida estiveram nessa “barca dos sonhos”: Andrew Serrano, freesurfer dono de estilo e cabelos invejáveis, e Rodrigo Matsuda, ninja, samurai, mestre (e qualquer outra conotação levemente preconceituosa) das alaias e pranchas de madeira em geral.

O dia acordou perfeito para um troço desses. A luz no ponto certo, com aquele tom bonito de inverno, apesar de nem ser inverno. As ondas no tamanho usual, mas com uma formação que só vem em ano bissexto e olhe lá. E a água numa temperatura que ainda pedia roupa de borracha, o que de certa forma (quando você vive em um lugar quente) causa a sensação de surfar em outro pico que não aquele que você já conhece de olhos fechados.

Bom, agora que você já foi apresentado aos personagens e já consegue sentir um pouco do clima, você acompanha essa balbúrdia em fotos, gifs e palavras trocadas indiscriminadamente via aplicativo de mensagens instantâneas.

AÇÃO!!!

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Rapha Tognini: As alaias, junto com as olos, eram a pranchas dos havaianos de séculos atrás. Essas pranchas sumiram do mapa entre os anos de 1900 até meados de 2000, quando o Wegener voltou com o conceito e reacendeu esse lance mais primitivo de explorar pranchas sem quilhas, de encontrar uma diversão gigantesca em algo teoricamente simples. Imagino que vocês dois se identifiquem muito com isso. Tendo essas considerações em mente, e todo esse background que vocês têm, me digam: Tudo bem com vocês?

Rodrigo Matsuda: Aeeee… Tudo tranqüilo, como sempre 😅

Andrew Serrano: Risos. Manda a próxima.

Rapha: Qual era a expectativa de vocês pra essa queda?

Matsuda: Expectativa máxima! Encontrar boas ondas pra deslizar com as madeiras e dar boas risadas.

Andrew: Sempre fui obcecado por linhas e diferentes forma de surfar uma onda! A primeira vez que eu vi uma alaia foi no Hawaii, visitando um museu em Waikiki, e pensei que era impossível pegar onda!

Depois de alguns anos, graças ao Wegener, tivemos mais informações sobre esses tipos de pranchas e isso inspirou muitas pessoas a terem novas experiências. Surf é liberdade, e essa é a grande diversão de surfar com uma alaia. Você não sabe o que vai acontecer, você está livre e não tem regra.

Expectativas as melhores, surfar sem quilha é diversão garantida ❤

Rapha: Se essa queda fosse uma música, qual seria?

Matsuda: 海の声 – Umi no koe

Rapha: Tem no YouTube? O que quer dizer isso? É aquela versão japonesa do Backstreet Boys que você tava escutando outro dia?

Matsuda: Hahahah🖕🏾 Se quiser posso escolher outra kkkk

Rapha: Agora não tem mais volta, não. Ainda nem escutei, você que tá cheio de justificativa. hahahaha

Andrew: Gostei do som.

Matsuda: Tradução do título é “A voz do mar”.

Rapha: Qual a tua, Andrew?

Andrew: Alguma do Frank Sinatra

Rapha: Olhaaaa! Frankão é jóia. Por que essa escolha?

Andrew: Tava escutando agora… rs

Rapha: Surfar sem quilha é um negócio relativamente simples do ponto de vista de performance de manobras, mas num panorama geral é bem complexo e pode deixar o sujeito bem frustrado. Eu acredito que é uma boa aula de humildade e simplicidade. Qual a percepção de vocês sobre o surf sem quilhas? Por favor, sejam bem abrangentes e viajões na resposta.

Matsuda: Surf sem quilhas, pra mim, é como se fosse outro planeta que todos querem conhecer mas nem todos têm coragem. Um planeta pouco explorado, grande e diferente, onde todos são iguais e ninguém é melhor que ninguém.

Pra entrar lá, você precisa deixar algumas coisas de lado, como: seu ego e tudo que sabe ou pensa que sabe sobre surf. E trazer outras, como: a humildade, o sorriso e uma prancha sem quilha.

Todos são bem-vindos, mas não é pra todos… Não digo isso nem pela habilidade (que isso você deve deixar lá pra trás), mas pela disposição de sentir diferentes sensações numa session.

Já faz 9 anos que entrei lá pela primeira vez… Já fui sozinho, com amigos e também junto com a Nana [Naomi, filha do Matsuda] quando ela tinha 4 anos. Sempre que posso dou uma passadinha por lá!

 

Andrew: Esquece tudo que aprendeu sobre surf ou surfar, e começa do zero.

São outras dificuldades e novos pensamentos… Não tem regra e não tem direção, você não manda em nada. É tudo natural, espontâneo. Cada onda, uma experiência diferente.

Surfar sem quilhas é estar livre, sem medo de errar, e ter coragem pra descobrir e aprender!

 

Rapha: As duas últimas respostas de vocês têm em comum um lance de liberdade, de deixar as coisas. Eu acho que no surf hoje em dia a gente é muito pautado por uma necessidade de resultado. Mesmo o cara que surfa só no final de semana acha que toda queda tem que render, que ele tem que pegar muitas ondas, que a surf trip tem que ser coisa de filme e tal. Vocês acham que isso caga a vida? Não estou nem falando de um lado purista do surf, mas falando como vida mesmo. Será que tratar uma queda simples, como a de hoje, como uma surf trip pro quintal de casa pode ajudar as pessoas a encararem as coisas de uma forma mais fluida e menos penosa?

Matsuda: Tem carinha que surfa e na cabeça dele faz as mesmas coisas que seus ídolos. Quer fazer trips como as dos filmes e nem dá valor ao seu quintal. Se cobra em todas as quedas porque não fez isso ou aquilo, e nem curte a session. Vai surfar todos os dias, mesmo não estando a fim, apenas para “evoluir”, e muitas vezes nem se diverte… Gosto da liberdade de ir surfar quando estou a fim e sem ficar me cobrando, até porque sei que não sou um ótimo surfista. Mas me divirto em todas as quedas e, com amigos, melhor ainda. E é no quintal que eles estão…

Andrew: Eu sempre me divirto muito em todas as minhas sessions de surf não só pelo surf, mas por toda a atmosfera que cria o ambiente… os amigos, o caminho pro mar e aquela sensação de se desligar das coisas.

O “surf resultado” acaba ficando de lado, quase esquecido na minha mente.

Ir surfar, pra mim, é ir ser feliz. Não existe a tristeza ou decepção, não tem espaço pra isso, estou em outra dimensão agora, tudo é perfeito nesse mundo.

Devíamos usar isso em nossas vidas… Todos deveriam procurar seu mundo perfeito.

Rapha: Que lindo isso, garotos!

Rapha: Me falem um pouco do quiver dessa micro trip de 3 horas para o quintal de casa.

Matsuda: Fomos com duas finless de cortiça: 5’9″ x 19″ x 2″ e 5’8″ x 19″x 2″, fundo de Paulownia, interior de EPS, 1 camada de bambu + 2 camadas de cortiça, que foi batizada de Sembei, um biscoito tradicional japonês feito de arroz que tem a mesma cor da cortiça. É sempre oferecido nas visitas de amigos, e as crianças adoram também.

Uma finless com bastante flutuação, flexibilidade e com deck de cortiça dispensa o uso de parafina. Tratada com óleos naturais e cera de abelha. Para pura diversão…

Rapha: Descrevam a melhor onda dessa queda.

Matsuda: Me lembro de uma esquerda do Andrew passando por mim com bastante velocidade e fluindo leve. Achei demais aquela imagem: onda perfeitinha, sol, pouca gente na água… Foi bem divertido. Todas foram legais ✌🏽

Rapha: E sua?

Matsuda: Lembro de estar flutuando numa esquerda longa, deixando ela me levar, e de estar dando risada sozinho por aquela session. Em alguns momentos parecia que estávamos sozinhos no mar. Deu boas ondas no Bostrô, e achei que a Sembei encaixou bem nas ondas dessa queda.

Andrew: Legal, eu lembro dessa onda! Foi demais poder dividir o lineup com você, Rodrigo, e testar os seus novos modelos.

Rapha: Consegue descrever algum momento dessa queda, Andrew?

Andrew: Lembro de um drop irado. Era uma onda da série grande, não consegui completar, perdi a prancha e nadei até a areia pra buscar… rs.

Rapha: Vocês já tiveram vontade de parar de surfar?

Matsuda: Não

Andrew: rs… não

Rapha: Essa queda foi com prancha sem quilhas, feitas de madeira e cortiça, parada sustentável, queda no quintal de casa, entre amigos, diversão pura, sem cobranças. Seguindo essa linha de pensamento, vocês acham o surf nas olimpíadas uma ideia ruim ou uma ideia péssima?

Matsuda: Poderia ser legal se fosse com pranchas sem quilhas, sem lycras, sem baterias, sem notas, sem medalhas e sem pódio, com surfistas segurando bichinho de pelúcia… hahah

Rapha: Eu gosto dos bichinhos de pelúcia, inclusive seria legal todo mundo vestido de bichinho de pelúcia.

Matsuda: Os bichinhos são legais 🦁👹 O que não é legal é surf nas olimpíadas 👎🏽

Andrew: Acho que isso é natural. O esporte está crescendo e isso é inevitável. Mas não podemos esquecer nossa história, o que é o surf, de onde viemos e valorizar nossa arte e cultura!

Rapha: Que saída política, hein, garoto? Hahahaha

Rapha: Acho que todo fotógrafo acaba tendo afinidade com um grupo de surfistas. Vocês com absoluta certeza estão nos meus 5 do coração. Só queria que vocês soubessem disso… Nesse caso não tem nenhuma pergunta, só rasgação mesmo.

Rapha: Quem mais vocês trariam pra essa micro trip? Pode ser surfista ou não.

Matsuda: Raphael Tognini 👌🏽

Rapha: Mat, fico lisonjeado, mas você percebeu que eu já estava lá, né? Ou fui tão insignificante assim? Ou você não suporta nem pensar na dor de eu não estar junto? Hahahahaha

Matsuda: Hahahahah. Foi quem veio na cabeça de estar surfando junto 😅😅😅😂😂

Rapha: E tirando eu? Hahaha

Andrew: Quem eu levaria….🤔 Tom Wegener

Rapha: Pra que Wegener se a gente tem Matsuda San, mestre das madeiras deslizantes?

Andrew: Pra celebrar o que ele despertou.

Rapha: Ok, tá valendo! Hahahah

Matsuda: Tá certo!!!! Então iria trazer o Yuichi Endo pra surfar aqui e conhecer vocês. Certeza que ele iria curtir… ahaha

E assim, do nada, acabou a queda, a manhã, aquele momento. Talvez, sem a brincadeira toda, essa sessão caísse no esquecimento. Talvez ela caia, talvez não. Ao menos tentamos. Cada um da sua maneira se dispôs a, no meio do crowd e atropelo dos anseios cotidianos, viajar para algum ponto da sua cabeça onde aquela atividade repetida pela trilhonésima vez no mesmo local de anos era algo que merecia ser gravado na memória.

Em tempos de babaquices excessivas, posts egocêntricos e informações saindo até pelas orelhas, se divertir sem filtros é tão difícil quanto surfar sem quilhas.

Mas pode ter certeza: os dois são igualmente recompensadores.