Se até agora o tão cafona e alardeado “novo normal” provocou alguma mudança prática na vida das pessoas que não se defina como um incômodo parcial ou uma completa desgraça, talvez seja o êxodo urbano rumo ao litoral a partir de um suposto distanciamento social.

Não entrando nos reflexos dramáticos da situação pandêmica para muitas das pessoas desassistidas que tentam sobreviver no Brasil, esse episódio do Surf de Mesa tenta isolar o impacto percebido nas cidades litorâneas, que passaram pela estação menos típica de suas histórias. É inverno, dizem, mas nas praias o movimento é de plena temporada de verão. Nem o clima contribuiu. Tem ondas como em qualquer inverno, mas faz calor como se não houvesse amanhã. O cenário perfeito para quem quer tentar fugir de qualquer realidade.

Novamente, reforçando que a constatação não se trata de um problema diante dos reais problemas que muita gente vive desde o início da pandemia, Junior Faria, Carolina BridiRaphael Tognini buscam analisar se a procissão fora de temporada pode passar a ser definitiva no cenário das cidades de praia e compreender como isso pode se refletir nas atividades locais e no próprio surf.

Primeiras impressões

A presença de pessoas de fora em atividades rotineiras durante a semana e as muitas reformas que começaram a rolar nos imóveis do litoral são alguns dos sinais perceptíveis desde que se começou a ouvir o termo quarentena aplicado ao Brasil de 2020.

Como primeira impressão, pode-se ver duas vias. Por um lado, a presença de mais gente usufruindo a cidade como um todo pode, a médio e longo prazo, produzir uma cena cultural mais movimentada, também com reflexos econômicos positivos para cidades que costumam ficar abandonadas por suas administrações públicas fora de temporada. Por outro lado, há um reflexo instantâneo no crowd de surfistas e banhistas, que passa a se intensificar, provocando impacto principalmente nos dias de semana.

Ambos os lados, porém, são reflexos ainda indefinidos, visto que este é um movimento muito recente, e que não se sabe o que será definitivo em relação a possíveis novos costumes de trabalho e comportamento. Mas uma coisa é fato: se quem vive em cidades litorâneas geralmente tem a sensação de morar no quintal do grande centro, agora enxerga quem chega na praia vislumbrando a realidade como se fosse uma novidade. “Oh, nossa! Também dá para morar aqui, né?”

Sim, por mais incrível que possa parecer para alguns, no litoral também há civilização.

Como é morar na praia?

Se você já ouviu ou já se fez essa pergunta, pode colocar a resposta na ponta da língua: quem mora na praia é siri. O pessoal, no litoral, também costuma morar em casas e apartamentos, trabalhar em atividades bem ou mal remuneradas, ir ao mercado e se alimentar com iguarias tão orgânicas ou industrializadas quanto as que estão nos grandes centros. Com mais qualidade de vida? Provavelmente sim. Mas nem sempre. Isso não é regra porque, tudo depende, como sempre, da sua condição.

Não é raro que quem mora na praia costuma ficar feliz quando o verão acaba e os turistas se afastam, abrindo espaço para os habitantes usufruírem seus espaços com um pouco mais de liberdade. Viver em uma cidade de praia significa perceber que ali existe toda uma dinâmica que não é necessariamente benéfica ou produtiva para quem mora. As pessoas precisam se adaptar muito à sazonalidade, e isso costuma abalar a auto-estima da população local, visto que nem todo visitante trata o lugar e as pessoas com respeito e cuidado.

Como chegar na vida praiana

Há uma visão extrativista ao invés de construtiva em quem enxerga a cidades litorâneas como servis. Para muitos, é o lugar onde os limites podem ser extrapolados. Por isso, se você está pensando ou conhece alguém que está planejando se mudar para uma cidade do litoral, a sugestão é fazer isso de forma a ter respeito onde se está chegando.

No Brasil, há uma relação dúbia com a costa. Por um lado, são elevados ao status de paraísos. Por outro, são rebaixados somente a fins de diversão, e não de produtividade.

A praia não costuma ser vista como construtiva. Mesmo cidades como Rio de Janeiro, Florianópolis e Recife, que fazem valer o peso de serem capitais, quase nunca se destacam pelas variadas atividades econômicas que produzem. Há preconceito com a produtividade de seus moradores. Santos, por exemplo, tem o maior porto da América Latina e ainda assim nem sempre é vista como uma cidade de ultra produtividade ou como o polo cultural que é.

E o problema acontece quando a ignorância sobre a vida além do turismo vem acompanhada do comportamento colonizador. Por isso, o interessante na possibilidade de ter mais gente habitando as cidades de praia é que se abre a real possibilidade de desmistificar estes lugares. São, afinal, cidades comuns, com o desejável detalhe de terem praias.

Sem territorialismo

Sem cair em armadilhas territorialistas ou guerra entre culturas, neste episódio o assunto segue pela observação da dinâmica das cidades, que talvez seja o ponto mais prejudicado da relação dúbia do brasileiro com o litoral. Você já deve ter ouvido que tal cidade tem vocação para o turismo. Mas servir populações de grandes centros que chegam em hordas geralmente desgovernadas não é vocação de nenhuma cidade litorânea. Uma cidade de 30 ou 300 mil habitantes precisa funcionar para os 30 ou 300 mil habitantes que estão ali o ano todo.

É fácil pensar nestes lugares como independentes, com prefeituras e câmaras de vereadores próprias. Mas pouco se entende que, em determinado momento, ela precisa lidar de repente com parte da população de grandes metrópoles. E que isso pode acontecer no espaço de uma ilha, por exemplo. Além disso, como não é possível colocar todo o litoral brasileiro em uma mesma escala, os impactos serão de acordo com as características da cidade.

O impacto nas praias da Baixada Santista, por exemplo, que é uma região metropolitana com uma atividade econômica bem definida, é diferente de outras regiões litorâneas menos acostumadas a grandes movimentações, como Vale do Ribeira, litoral norte paulista ou algumas praias mais do Norte, Nordeste e Sul do país.

O litoral não será o mesmo

Também é preciso considerar que, a partir do momento em que mais gente se muda para o litoral, ele não necessariamente é o mesmo litoral frequentado nas férias ou aos finais de semana. Quando as preocupações do trabalho estão longe, a sensação é outra. A partir do momento em que a pessoa passa a viver e trabalhar no mesmo lugar onde busca seu momento de escape, ele muda de figura. Quando não só uma, mas 10 mil outras pessoas se também mudam, aquele lugar não será mais o mesmo em nenhuma condição.

Mas se o espaço fica crowdeado, também há o lado positivo. Mais gente pensando em melhores condições de vida como um todo e não só durante as férias pode gerar reflexos numa administração pública melhor a partir de maiores pressões para a criação de um contexto mais propício ao desenvolvimento.

O impacto na auto-estima da população local passa a ser produtivo a partir do momento em que o “estrangeiro” passa a ver a cidade com olhar menos extrativista. Mas é certo que o paradigma muda mais rápido para a pessoa que chega, em função do impacto percebido já nas primeiras atividades rotineiras. Diante da realidade, o resultado pode ser a decisão de ir embora novamente, ou de procurar meios de contribuir.

Sem colonizar

Há o perigo ainda da intenção de melhorar o ambiente se transformar em atitude colonizadora. O ideal é que as mudanças aconteçam organicamente, seja através de iniciativas próprias ou de pressão sobre o poder público local por melhores condições gerais de desenvolvimento econômico e social.

Como agente de mudança, o êxodo urbano sentido litoral pode ser interessante. Mas, para isso, pode ser preciso sacudir o sistema de forma mais veemente, num nível em que ele não consiga se acomodar novamente aos gargalos anteriores. A dúvida fica sempre na intenção e compromisso de quem chega. Em um sistema em que o comportamento predatório é muito forte, de imposição de culturas, extrativismo e colonialismo, trata-se de algo a observar com atenção.

Se quem está pensando em se mudar visualiza a vida no litoral como apenas maravilhosa, talvez seja interessante ajustar expectativa e realidade. Enxergar o litoral como um lugar servil é um erro. Ver o litoral como um lugar onde tudo é permitido também é um erro. Quando em férias, é como se algumas pessoas desligassem as chaves da consciência. Um exemplo bobo? A pessoa que anda normalmente na calçada em sua cidade resolve caminhar pelo meio da rua quando está no caminho que leva até a praia.

Reflexos no surf

Tem mais gente surfando? Provavelmente sim. O maior impacto proporcional de crowd é verificado de segunda a sexta. Mas a mudança de mentalidades e comportamentos leva tempo para acontecer. Provavelmente não será possível definir isso em seis meses. Afinal, todo mundo que já mudou de cidade concorda que se integrar a um novo ambiente costuma levar mais do que alguns meses. A adaptação exige tempo e, só depois, é possível entender os novos comportamentos. O contexto da pandemia traz ainda a dúvida do que vai acontecer em um, dois, cinco ou dez anos.

Mas é certo que a opção de mudança nesse momento está sendo pensada por quem tem o privilégio de um emprego fixo. Se antes da pandemia era preciso deixar alguma coisa de lado para fazer esse movimento, agora o home office da pandemia gera um movimento baseado em pessoas que não estão perdendo nada com a decisão. Menores custos com aluguel para morar melhor, ter maior qualidade de vida e possivelmente a mesma renda e mesmo fluxo de trabalho. Quando só há ganho, a escolha não é tão difícil. É preciso entender o que acontecerá quando surgir no cenário algo a ser deixado de lado. Nesse sentido, é fundamental que quem está se mudando para o litoral faça o movimento com a consciência de respeito. Em resumo, é pensar como pode contribuir com o lugar sem incorrer nos erros do olhar colonizador.

Um leve guia de como chegar

  1. CHEGUE COM RESPEITO. Pegue o exemplo do surf. Se você faz uma surf trip, o básico ao chegar no pico é o respeito. Você vai chegar no lugar respeitando, esperando a sua vez. Ninguém é bem recebido começando de outro jeito. Você pode chegar e ficar quietinho, na sua. A escolha é sua. Mas pode ir além. E aí entra a segunda dica.
  2. VALORIZE O LOCAL. Procure se inteirar dos produtos e serviços locais. Provavelmente, você vai se surpreender. Tentar se integrar e valorizar as pessoas e o que elas produzem localmente abre portas e costuma ser uma das partes mais divertidas da mudança. É surfista? Procure uma marca de roupa ou de prancha local. Como o alimento produzido pelo brother que surfa ao seu lado. E por aí vai…
  3. TENHA CONSCIÊNCIA DO SEU IMPACTO.  Se você deseja se integrar e imprimir um pensamento ou ação naquele lugar, saiba que isso também tem consequências para os outros. É um comprometimento. Grandes centros são como engrenagens que rodam independente de você. Mas muitas cidades menores ainda vivem em um esquema um pouco mais próximo do conceito de comunidade. Se você fizer esse movimento de mudança, lembre que as pessoas já estão vivendo numa certa sincronia. Se você vai entrar nisso, entre consciente de que causará um impacto, tanto na chegada quanto na saída.

Por fim, o Surf de Mesa se declara a fovor de que as pessoas morem no litoral e deixem de lado o estigma de que ali é a piscina do grande centro, e que os locais são os limpadores da piscina. 😜

 

 

 

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