O que falta para que os produtos de surf desenvolvidos no Brasil sejam valorizados internamente? A pergunta não é nossa. Não veio das nossas modestas mentes, mas sim do outro lado do Atlântico. Veio do continente europeu, onde o brasileiro médio, inclusive, costuma mirar como referência de superioridade. A pergunta é de Miguel Valadas, que acompanha o Surf de Mesa direto de Portugal. É por isso que, neste episódio, o sotaque lusitano abre nosso parlatório digital da semana.
Depois de jogar a dúvida no grupo do Surf de Mesa no Telegram, fazendo todo mundo, incrédulo, correr para um divã interno, Miguel explicou. “Minha pergunta tem por base o seguinte: Eu acompanho há muito tempo projetos brasileiros ligados ao mercado do surf – quilhas, pranchas, surfskates, equipamentos, parafina e outros acessórios. O que percebo é que o desenvolvimento é cada vez mais evoluído, tem cada vez mais qualidade. Quando tenho contato com estes produtos, a conclusão é que todos os que chegam em Portugal são de qualidade de topo mundial. Não ficam atrás de nenhuma marca famosa produzida e desenvolvida ou pensada nos Estados Unidos e produzida na Ásia. Vossos produtos são, na minha opinião, até superiores”, explicou, com todo o garbo e a elegância da língua portuguesa.
“Não vou nem falar dos shapers e dos surfistas que, todos nós sabemos e está mais que provado, são de qualidade mundial”, continuou. Nesta última frase, vale destacar o trecho “todos nós sabemos”. Será?
Todos quem?
Quando Miguel, do outro lado do Atlântico, fala que todos nós sabemos, é inevitável se perguntar: “todos” quem? Porque todos os brasileiros, certamente que não. Já que isso, por si só, faria inexistir a própria pergunta que dá origem ao debate. Talvez é aí que mora a primeira resposta à pergunta de Miguel.
Voltemos ao início: O que falta para que os produtos de surf desenvolvidos no Brasil sejam valorizados internamente? Falta nós, brasileiros, sabermos disso. E eis a origem da encrenca. Para saber reconhecer certas coisas, antes é preciso uma lista de outros saberes muito pouco sabidos por aqui.
A lista é longa e merece discussão que não se encerra em um texto. Passa pela cultura de um povo maltratado social e economicamente. Mas é nisso também que talvez resida a origem da própria qualidade alcançada. Genialidade também surge da necessidade, da mente inconformada com a dificuldade de acesso. E daí, quando o desenvolvimento vem do sujeito calejado, da economia sempre bancarrota, do complexo de terceiro mundo, do sentimento individual de milhões de excluídos evoluído para a consciência coletiva da autoexclusão, fica difícil dissociar o resultado de qualidade do que, em maioria, se origina da gambiarra para suprir carências. Carências do ter, sim. Mas, em aspectos mais amplos, suprir o que nos falta como sociedade.
A síndrome da etiqueta
Para saber reconhecer qualidade, é preciso acesso, conhecimento e confiança no próprio julgamento. Como a dificuldade de acessar é justamente o que motiva a criação interna, é de difícil acesso a própria comparação. Assim, seguimos vendo marcas gringas dominando um mercado interno ditado por aparências e alimentado pela baixa autoestima da nacionalidade brasileira. Quando não sabemos julgar o que é bom ou não sentimos que temos base para confiar no próprio julgamento, é mais fácil pertencer a um grupo e validar a própria existência naquele meio possuindo aquilo que alguém já aprovou. Quando esse alguém é gringo, é como se fosse a aprovação viesse da própria voz do Deus (seja lá o que for isso ou qual for o seu).
Paga-se mais pela unanimidade inquestionável. Inquestionável porque nunca contestada. Poucas vezes se cogita comparar, de fato, a qualidade e funcionalidade do que vem de fora para a realidade do meio em que vivemos. Afinal, se o surf é, via de regra, adaptável à onda, em que momento nos convencemos que o design de uma prancha pensada para uma onda da Califórnia, por exemplo, seria melhor para um brasileiro surfar no quintal de casa do que uma prancha com design pensado pelo shaper local do seu pico?
Quer motivos para se orgulhar?
Quando procuramos, encontramos muitos. Infinitos, até. Mas aqui vamos listar apenas três, para ficar nos casos internacionalmente reconhecidos e suprir essa necessidade de aprovação gringa (afinal, resolver isso careceria de uma reinvenção social por completo, o que texto nenhum dá conta sozinho). Um dos motivos para se orgulhar você provavelmente já saiba e use bastante. Mas há outros dois que talvez você consuma sem nem perceber.
1. A parafina Fu Wax
Essa é fácil. Depois que Kelly Slater descobriu a magia da aderência de uma Fu Wax e espalhou sua preferência por aí, a parafina produzida em uma praia do Guarujá, no litoral paulista, explodiu nos quatro cantos do mundo. Fato é que ela surgiu muito antes de Slater se derramar de amores. Testes e mais testes dos irmãos Fuad, Wady e Elias Mansur entre as décadas de 70 e 80 resultaram na fórmula guardada até hoje como segredo da família.
A mesma que, quando testada pela primeira vez fez o então jovem obcecado por surf Fuad quase morrer de hipotermia. A aderência foi tanta, que ele não queria mais sair das águas geladas do Rio Grande do Sul, onde sentiu uma sensação inédita de segurança sobre a prancha. Fuad desmaiou na areia e passou dois dias no hospital. Mas, pra sorte do surf, não só saiu a tempo como continua fazendo a melhor parafina do mundo até hoje.
2. Beach Byte, o sistema de notas e webcasts usado pela WSL
Mano Ziul e Celso Alves, surfistas de Niterói, no Rio de Janeiro, criaram em 1984 um sistema de soma das notas nos campeonatos de surf para agilizar o que até então era feito à mão sobre pranchetas a partir de cálculos de cabeça ou, quando muito, na calculadora manual. O original sistema Beach Byte ganhou colaboradores e foi evoluindo constantemente conforme a própria evolução da computação, e é até hoje o sistema usado pela WSL (World Surf League) no julgamento e transmissão dos campeonatos de surf pelo mundo todo.
A Grande História do Surf Brasileiro conta mais detalhes da história, incluindo os primórdios do contrato com a então ASP (Association of Surfing Professionals) e a tentativa de empresas gringas que “sucumbiram diante da qualidade superior e criatividade de Mano e sua equipe”, nas palavras do autor do livro, Reinaldo Andraus, o Dragão.
3. DSD, o software de design de prancha
Em 1994, o shaper brasileiro Luciano Leão desenvolveu uma ferramenta para reproduzir com mais agilidade e precisão os designs das suas pranchas de surf. Nascia assim o software DSD (Digital Surfboard Design), que revolucionou a produção de pranchas de surf no mundo, permitindo a usinagem de blocos a partir de um modelo criado na tela do computador. O arquivo gerado não só dá origem à prancha, como permite ajustes secundários com precisão em um processo mais afinado de criação e desenvolvimento na relação entre shaper e surfista. Outros softwares surgiram depois disso para concorrer com o DSD, que é o sistema usado por muitos dos shapers mais reconhecidos no mundo.
Se você precisa de mais motivos para se convencer ou quer saber o que mais tem a ver com essa dificuldade do surfista em reconhecer o valor do que é produzido pelo mercado nacional de surf, comece valorizando esse podcast genuinamente brasileiro e, de quebra, ganhe muita informação de qualidade. Dá o play aqui ó:
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