Conheci uma história interessante através do livro ‘Hello, Brasil!’ do psicanalista italiano Contardo Calligaris. Em 1550, em Rouen na França, organizou-se uma grande festa com a presença de governantes, burgueses, comerciantes, cardeais e bispos. Tal festa reuniu, segundo relatos, 300 atores para encenar uma espécie de peça de teatro ao ar livre. A apresentação durava horas e contava com índios brasileiros trazidos à Europa de navio. O objetivo era apresentar um retrato dos nativos do paraíso americano recém-descoberto e saciar a curiosidade da elite humanista da França do meio do século XIX. Nesta festa, centenas de índios nus caçavam, plantavam e colhiam entre árvores e araras. Seguiam um roteiro que não condizia exatamente com a realidade que viveram na terra natal, mas saciava a expectativa da elite francesa da época que esperava conhecer a liberdade fantástica e o gozo irrestrito do paraíso intocado. Obedientes, os índios de Rouen atuavam. Obrigados a ser eles mesmos, mas de acordo com o imaginário dos espectadores.
Percebi uma semelhança entre o nativo brasileiro da encenação francesa e o surfista contemporâneo. Em um período em que a aprovação de empresas e consumidores se torna fundamental para a sobrevivência profissional do surfista, ele é incentivado e obrigado a encenar o que se espera dele ao invés de ser o que realmente é. Enquanto o surfista profissional do mundo real se preocupa em treinar, vencer e aparecer, além de pagar por comida, aluguel e uma boa prancha, O Surfista, persona utópica e fantástica, goza plenamente em smartphones, na televisão e na psique dos fãs. Uma encenação pautada pelo imaginário de seguidores sedentos pela reafirmação da persona criada por suas expectativas. O roteiro é direta e indiretamente definido por estratégias de marketing de empresas de comércio e comunicação que contratam, demitem e definem remuneração quase exclusivamente segundo números de likes e compartilhamentos.
O Surfista, personagem heróico pasteurizado por redes sociais, se tornou um produto enquanto o surfista é um ator. O Surfista que sempre foi fruto do nosso imaginário nada mais é do que uma construção. Despretensioso, esteticamente palatável e inalcançável na medida certa. Simultaneamente, o surfista que atua preocupado com o aluguel usa cartão de crédito para fazer compras no supermercado e paga inscrição em campeonatos com dinheiro de premiação.
O paradoxo atual se materializa em posts de celebração do mais puro prazer da vida perfeita d’O Surfista enquanto se ouve o lamento do surfista que não sabe como vai pagar as contas no mês seguinte e está incerto sobre quando receberá o temido email do empregador que diz: “a partir da presente data não precisaremos mais da sua prestação de serviço”. Espremido entre as demandas da vida real e a encenação exigida para a manutenção de sua carreira, o surfista profissional contemporâneo vive em um limbo existencial, preso no paradoxo entre ser surfista e parecer Surfista. É vítima e algoz.
Mas está tudo bem. O surfe brasileiro vive seu melhor momento. Temos campeões mundiais. Ano que vem tem Olimpíadas.