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Fernando Winck Ziliotto é o multiverso existencial onde surf, arte, caos e gentileza encontram a via de canalização perfeita de expressão ao mundo. A arte do Alucinandinho você provavelmente já conhece. Aqui nessas páginas, você conhecerá o Nandinho.

Texto por Carolina Bridi | Fotos por Raphael Tognini

– Vamos aqui por cima, os cavalos estão lá. Sou amigo deles desde pequeno.

Nandinho tinha 16 anos quando viajou sozinho ao México. Meio perdido no aeroporto e sem saber onde ficar, viu dois caras conversando em português e resolveu trocar ideia. Falaram que estavam com reserva na cobertura de um hotel grã-fino, e que lá ainda tinham um quarto desocupado, que então podia ser especialmente dele. Como chegou com a prancha na mão e sem planos, topou, mas não aguentou dois dias. “Muita loucura… Puta, pó… Eu descia e ficava lá na calçada conversando com um cachorro”. Um desses papos caninos foi interrompido quando um cara chegou chamando:

– Vamos, Camila.

Como o cachorro, cadela no caso, não ia, o cara resolveu entrar no papo com Camila e Nandinho. “Descobriu que eu tinha 16, tava ali naquela situação e chamou pra ir com ele onde tava mais uma raça do surf”. Pegou as coisas e saiu zarpado dali com Camila e Marcos Sifu para o pico em Puerto Escondido onde estavam também Jessé Mendes, Junior Faria, Alejo Muniz, Thiago Camarão e mais uma galera que costumava viajar para lá na mesma época.

Tinha muito brasileiro em Puerto nessa temporada. Surfistas, fotógrafos, alguns no freesurf, outros gravando filme para patrocinador, outros só de passagem. Quem o tirou da roubada foi justamente o cara que tinha como sua principal referência desde a icônica fotografia de Minduim, em que Sifu dá um aéreo vestindo uma máscara de palhaço. Nandinho, já com um pequeno patrocínio, em busca de se tornar surfista profissional e do nada se vendo em meio ao rolê dos sonhos, surfou tanto que deslocou o ombro. O médico disse que não voltaria a surfar, mas três meses depois, já estava de volta na água, e o que sobrou de tudo aquilo foi um pino para segurar o ombro no lugar até hoje e uma direção mais clara do que queria na vida. Enquanto estava machucado, pintou uma prancha. A sua, depois outra, de outros e outros. Depois um quadro. Quando viu, tinha alguém perguntando quanto custava e ele estava vendendo uma série por um valor digno de artista respeitado. Ok. Aqui saltamos alguns longos anos em uma única frase. Nem tudo é fácil assim como parece.

A CAVERNA

Nandinho tem hoje 32 anos. É uma das vozes mais desarmadas que ouvi nos últimos tempos. Ele está em busca, nesta fase da sua vida, de algumas respostas dentro de uma caverna metafórica que acabou de descobrir. Nandinho, a contragosto como todos nós, mas admitindo em voz alta como poucos somos capazes, está amadurecendo sem querer. Não que ele não estivesse antes. Mas nessa fase, o amadurecimento está mais denso, dolorido e consciente. O reflexo está também em seus traços. Antes de aprender a ler e escrever, já desenhava rostinhos nos cadernos. Sempre o mesmo. Dois olhos, um nariz que parecia um pinto, e uma boca feliz. “Muitas coisas na minha vida foram dizendo que eu nasci pra fazer isso, sabe? Quando eu entrei no caminho, nunca nem pensei em não ser.” Há uma certeza baseada no universo. “Às vezes, tipo uns 10 reais na conta. O dinheiro acaba hoje, amanhã eu vendo um quadro. Sempre foi assim, nunca fiquei na merda, sabe? Na merda total, no caso.” A gente ri. O ombro fora do lugar naquela viagem ao México culminou, ao mesmo tempo, no encontro com a arte de uma forma completamente satisfatória – nas pranchas, e na despedida do patrocinador. Foi um pouco decepcionante, assim, né? Depois foi descobrir que era tudo o que queria.

“Eu realmente vivi o surf por muito tempo só da pintura. A pintura me proporcionou o surf.”

A família tinha uma rede de papelaria que vendia material para artistas e as avós, exímias pintoras da técnica mais tradicional, a pintura a óleo. O ambiente da arte, então, não poderia ser mais familiar. Os cheiros, papéis, tintas, canetas. Este é seu habitat natural. Assim como o surf. Filho de surfistas, cresceu com pai e mãe o ensinando a surfar da maneira que acha mais bonita: “(ensinaram) com respeito, educação, a se conectar, pedir permissão, se importar com os outros, a dividir.” Isso fez, segundo ele, com que tivesse o surf como mais que uma religião. “É minha família, como um arroz quando tu sente o cheiro da cebola, assim, não sei. Quando eu tô na água, eu tô com meu pai e com a minha mãe, tô na minha família, sabe? Algo nesse tipo de sentimento.” Por isso, não tem como separar uma coisa da outra quando se fala no surfista e no artista. Já é, não tem como dividir. “Os dois, eu sou isso.” Não consegue dizer qual é o mais importante, mas entende que talvez para o mundo sua arte seja mais significativa, já que o surf é algo íntimo, que faz para si mesmo.

“Não consigo viver sem surfar e pintar. Ou criar. Eu não pinto porque eu quero. Eu pinto porque eu preciso.”

Quando entendemos que a arte que expressa também vem do surf, voltamos ao início. De repente, estamos à porta da caverna e parece que o que há de significativo para o mundo é exatamente aquilo que há dentro de Nandinho.

Técnica, materiais, já domina quase tudo. Mesmo assim, sente que está atrasado. ”O que eu realmente preciso, tá aqui dentro. E aí é a busca agora.” Nandinho explica que há momentos em que anda na técnica e momentos que anda com a mente, e sente que agora tem andado mais mente. Lidar com tanta emoção é complexo.

“Pintar é muito forte, sabe? Às vezes o cara chora, viaja nos pensamentos bons, ruins, vai… E tem que lidar com isso. É doido. É emocionante, sabe? É uma loucura. É incrível. A viagem pra tudo que é lado, assim, passado, presente, futuro, espaço, tudo… sabe?”

Acho que sei. Tento saber. Mas a realidade é que poucos sabem porque para se permitir acessar sentimentos de forma tão direta assim é preciso muita, muita coragem. Essa coragem, provavelmente, Nandinho encontra na companhia da legião que desenha. Os rostinhos que o acompanham desde antes de saber ler e escrever. Estas tantas cabeças. Porque Nandinho pensa. Muito. Dormindo, acordado. “Às vezes é muito difícil desligar. Tô sempre pensando no que que eu vou fazer, o que que eu vou pintar…aaaahhhhh”. Pensa tanto ou mais quanto a quantidade de cabeças que consegue fazer seriam capazes de pensar.

LADO DE DENTRO

Basquiat, esses gênios, assim, ele não sabe se ainda podem existir. Mas acredita que nem começou a fazer o que realmente tem que fazer na Terra. Por enquanto, sente que só está estudando para conseguir um dia expressar o que veio expressar aqui. O que quer é o alívio de olhar para um quadro e sentir que conseguiu. “Aquilo que tava aqui, agora tá ali. Pfffffff” (Respira aliviado). Diz que este é seu vício como artista.

Miguel e Samuel Pupo montando quebra-cabeça durante etapa do CT no Hawaii

LADO DE FORA

Aí, poxa, inevitável a preocupação, inclusive da família. “O que que tu vai ser, né, um artista? Artista surfista?! “Mas o tempo foi… Ter ficado ali tentando, amando fazer isso…” Nandinho sempre teve espaço de expressão. “Meus pais sempre confiaram em mim.” Aos 11, por exemplo, quando resolveu morar sozinho no Matadeiro, eles deixaram. Era onde estavam as coisas que ele mais amava. Surf, os amigos, o lugar. Passou dias lá comendo pão com queijo e pegando ônibus para ir à escola. Tudo certo. Menino responsável. O queijo estava meio estranho, mas tudo bem. A mãe resolveu passar para ver o que se passava, e descobriu que o queijo, na verdade, era massa de pastel. E assim foi. Aos 15 viajou sozinho para a Indonésia. Aos 16 para o México, onde tudo mudou. Do encontro com a vida que sonhava, ao ombro deslocado até a descoberta da arte como seu verdadeiro caminho dentro do surf, o tempo foi fazendo seu trabalho para responder quem se preocupava com ele. Um dia o padre, quando descobriu que Nandinho era neto do seu avô, pediu que Seu Nelson intercedesse pela pintura de um Santo Antônio. Situações assim, diz ele, “foram mostrando que não era só o dinheiro que dava valor a alguém.”

Depois de um tempo, começou a vender uns quadros caros. “Consegui uns feitos que espero fazer de novo. Seria bom.” Pintando pranchas, nunca ganhou dinheiro para se sustentar. Sempre foi mais por diversão de entrar no mar e ver a galera surfando com a prancha pintada, colorir o mar, colorir o surf. “Essa sempre foi a minha intenção.” Era dali também, da pintura de pranchas, que acabava vindo todo seu estudo, porque ali arriscava mais. Mas se hoje pode dizer que seu trabalho extrapolou a bolha do surf e que já não depende dele para fazer seu sustento, é porque passou anos trabalhando como uma impressora de si mesmo dia após dia indo por todos os cantos com malinha de tintas e prancha se dedicando incessantemente a fazer aquilo em que sua mente estava focada: seu sonho.

“A fé, não sei, a energia, acho que leva a gente até aonde a gente quiser, né? Todo dia da minha vida, não sei durante quantos anos eu surfei e pintei todo dia, todo dia, toda hora. Eu pintei 10 pranchas, 15 por dia.”

Como uma máquina, não parava. “Ia para o Norte da Ilha, para o Sul da Ilha, por Santa Catarina, por São Paulo, foda-se o dinheiro, só vai, vai, vai. Onde me chamava, eu fui levando. Eu plantei semente em muito lugar.” Nandinho ia para as festas e levava caneta, começava a tatuar a galera. “Acho que já pintei umas 500 pessoas numa noite. De fazer fila, brigarem na fila, ‘não, calma’, de acabar a caneta e falar, ‘meu Deus, se eu não pintar essa galera, vão me linchar aqui’.” Como Nandinho é um cara difícil de não gostar, a rede de amigos sempre foi grande e ele nunca parava. De segunda a segunda. “Terça-feira, lá na Barra, alguém queria pintar a prancha e fazer festa. Era lá que eu ia.” Pintava uma, aparecia outra, no final pintava cinco pranchas. Dali emendava outro lugar no outro dia, e assim seguia. “Sem brincar, todo dia eu pintava cinco pranchas, uma tela e algum lugar, parede, muro, capa de prancha”. Acredita que foi esse movimento frenético que disseminou sua arte. “Eu gostava disso. Desse caos mental, todo dia forçando a mente ao extremo. Pinta, risca ali, e quando chegava no final, falava: ‘pintei tudo isso hoje’.”

A PORTA

Hoje em dia reconhece o quanto aquilo foi estressante. Não consegue, e provavelmente não quer, mais isso. Gosta de parar, pensar… Estudar o que quer fazer. “Com o tempo, não sei, minha mente foi adoecendo de tanta informação.” Nandinho sempre soube o poder que a mente tem. Mas nunca tinha a reconhecido pelo ângulo da sua face obscura. “Pode fazer tudo. Pode morrer. Pode fazer voar. Sei lá, tudo o que tu quiser.” Enquanto “todo o conhecimento necessário está na natureza pura”, acredita. É por isso que além de tintas, canetas e telas, Nandinho gosta de pintar com a própria natureza. Já fez com mel, e as formigas vieram. Um rostinho feito delas. Também com fogo, com a chuva. Um de seus quadros foi finalizado pelas gotas caindo, inesperadamente. “Tô sempre tentando fazer parte da natureza. Ahhh… Sou da natureza. Minha busca é cada vez maior me tornar natureza. Fazer parte dela, assim. Não usar ela, né? Sei lá, tipo… Ser amigo dela, assim. Tá no círculo dela.” Talvez por isso também se faça tão presente, especialmente nas cabeças e rostinhos, sua “parceria”, a expressão física quase sempre de uma mulher. Não sempre. Mas é isso. Tem muito desse lado feminino. Essa sua relação com a natureza é tão transversal que em nenhum momento, em nenhum desenho, em nenhum ponto ou risco de sua arte jamais saiu alguma expressão óbvia do surf, como uma onda desenhada em uma tela, por exemplo. O motivo?

“Eu nunca vou chegar perto da beleza da natureza, então eu nem perco meu tempo. A minha ideia é expressar, sei lá, com o mínimo possível, assim, de uma forma que seja… Que eu mesmo tô descobrindo isso, sabe?” Sente-se só uma ferramenta que consegue pegar uma energia para expressar.

Acho que o ser humano meio que sai um pouco do ecossistema, e o que quer é saber da Terra, do que o universo quer. Não o que querem no YouTube, no Instagram. Talvez por isso hoje seja até difícil comprar um quadro seu. É preciso insistir no inbox do @alucinandinho. Precisa melhorar nisso, ele admite. Mas reconhece também que a insistência ali não deixa de ser um filtro contra a mera curiosidade. A rebeldia faz parte da energia punk rock que cultua. É assim que também acredita no surf, como essência em atitude de contracultura… …como quando poucas vezes o dinheiro definiu o que queria fazer. Ou quando escolheu uma antiga professora do colégio que dizia que ele não seria nada na vida para ocupar um cargo subordinado na exposição de suas obras na Assembleia só para poder ouvi-la falar: “Caramba, eu nunca imaginei!”. Ou ainda quando escolhia se esforçar mais para incomodar. Quando descobriu que a arte veio para causar e que o desconforto é um ótimo caminho, ser chamado de aberração até chegou a ser um elogio. “Antigamente era mais fácil.” Pintava a unha, andava com a roupa toda pintada, já causava. É o seu jeito. Hoje em dia, em que o cotidiano das pessoas já tem sido incômodo suficiente, ser chamado de aberração e ver alguém puxando a criança pra longe já não tem graça nenhuma. Com o tempo, percebe quanta coisa carrega e como pode se cuidar mais. Nandinho acredita no universo, confia no universo, confia no seu caminho.

“O surf eu consumo, eu vivo. Minha alma ama isso. A arte é maior que eu.”

Publicado originalmente na edição impressa nº 02 da Revista Flamboiar. Para saber mais, clique aqui

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Fernando Winck Ziliotto é o multiverso existencial onde surf, arte, caos e gentileza encontram a via de canalização perfeita de expressão ao mundo. A arte do Alucinandinho você provavelmente já conhece. Aqui nessas páginas, você conhecerá o Nandinho.

Texto por Carolina Bridi | Fotos por Raphael Tognini

– Vamos aqui por cima, os cavalos estão lá. Sou amigo deles desde pequeno.

Nandinho tinha 16 anos quando viajou sozinho ao México. Meio perdido no aeroporto e sem saber onde ficar, viu dois caras conversando em português e resolveu trocar ideia. Falaram que estavam com reserva na cobertura de um hotel grã-fino, e que lá ainda tinham um quarto desocupado, que então podia ser especialmente dele. Como chegou com a prancha na mão e sem planos, topou, mas não aguentou dois dias. “Muita loucura… Puta, pó… Eu descia e ficava lá na calçada conversando com um cachorro”. Um desses papos caninos foi interrompido quando um cara chegou chamando:

– Vamos, Camila.

Como o cachorro, cadela no caso, não ia, o cara resolveu entrar no papo com Camila e Nandinho. “Descobriu que eu tinha 16, tava ali naquela situação e chamou pra ir com ele onde tava mais uma raça do surf”. Pegou as coisas e saiu zarpado dali com Camila e Marcos Sifu para o pico em Puerto Escondido onde estavam também Jessé Mendes, Junior Faria, Alejo Muniz, Thiago Camarão e mais uma galera que costumava viajar para lá na mesma época. Tinha muito brasileiro em Puerto nessa temporada. Surfistas, fotógrafos, alguns no freesurf, outros gravando filme para patrocinador, outros só de passagem. Quem o tirou da roubada foi justamente o cara que tinha como sua principal referência desde a icônica fotografia de Minduim, em que Sifu dá um aéreo vestindo uma máscara de palhaço. Nandinho, já com um pequeno patrocínio, em busca de se tornar surfista profissional e do nada se vendo em meio ao rolê dos sonhos, surfou tanto que deslocou o ombro. O médico disse que não voltaria a surfar, mas três meses depois, já estava de volta na água, e o que sobrou de tudo aquilo foi um pino para segurar o ombro no lugar até hoje e uma direção mais clara do que queria na vida. Enquanto estava machucado, pintou uma prancha. A sua, depois outra, de outros e outros. Depois um quadro. Quando viu, tinha alguém perguntando quanto custava e ele estava vendendo uma série por um valor digno de artista respeitado. Ok. Aqui saltamos alguns longos anos em uma única frase. Nem tudo é fácil assim como parece.

A CAVERNA

Nandinho tem hoje 32 anos. É uma das vozes mais desarmadas que ouvi nos últimos tempos. Ele está em busca, nesta fase da sua vida, de algumas respostas dentro de uma caverna metafórica que acabou de descobrir. Nandinho, a contragosto como todos nós, mas admitindo em voz alta como poucos somos capazes, está amadurecendo sem querer. Não que ele não estivesse antes. Mas nessa fase, o amadurecimento está mais denso, dolorido e consciente. O reflexo está também em seus traços. Antes de aprender a ler e escrever, já desenhava rostinhos nos cadernos. Sempre o mesmo. Dois olhos, um nariz que parecia um pinto, e uma boca feliz. “Muitas coisas na minha vida foram dizendo que eu nasci pra fazer isso, sabe? Quando eu entrei no caminho, nunca nem pensei em não ser.” Há uma certeza baseada no universo. “Às vezes, tipo uns 10 reais na conta. O dinheiro acaba hoje, amanhã eu vendo um quadro. Sempre foi assim, nunca fiquei na merda, sabe? Na merda total, no caso.” A gente ri. O ombro fora do lugar naquela viagem ao México culminou, ao mesmo tempo, no encontro com a arte de uma forma completamente satisfatória – nas pranchas, e na despedida do patrocinador. Foi um pouco decepcionante, assim, né? Depois foi descobrir que era tudo o que queria.

“Eu realmente vivi o surf por muito tempo só da pintura. A pintura me proporcionou o surf.”

A família tinha uma rede de papelaria que vendia material para artistas e as avós, exímias pintoras da técnica mais tradicional, a pintura a óleo. O ambiente da arte, então, não poderia ser mais familiar. Os cheiros, papéis, tintas, canetas. Este é seu habitat natural. Assim como o surf. Filho de surfistas, cresceu com pai e mãe o ensinando a surfar da maneira que acha mais bonita: “(ensinaram) com respeito, educação, a se conectar, pedir permissão, se importar com os outros, a dividir.” Isso fez, segundo ele, com que tivesse o surf como mais que uma religião. “É minha família, como um arroz quando tu sente o cheiro da cebola, assim, não sei. Quando eu tô na água, eu tô com meu pai e com a minha mãe, tô na minha família, sabe? Algo nesse tipo de sentimento.” Por isso, não tem como separar uma coisa da outra quando se fala no surfista e no artista. Já é, não tem como dividir. “Os dois, eu sou isso.” Não consegue dizer qual é o mais importante, mas entende que talvez para o mundo sua arte seja mais significativa, já que o surf é algo íntimo, que faz para si mesmo.

“Não consigo viver sem surfar e pintar. Ou criar. Eu não pinto porque eu quero. Eu pinto porque eu preciso.”

Quando entendemos que a arte que expressa também vem do surf, voltamos ao início. De repente, estamos à porta da caverna e parece que o que há de significativo para o mundo é exatamente aquilo que há dentro de Nandinho.

LADO DE DENTRO

Basquiat, esses gênios, assim, ele não sabe se ainda podem existir. Mas acredita que nem começou a fazer o que realmente tem que fazer na Terra. Por enquanto, sente que só está estudando para conseguir um dia expressar o que veio expressar aqui. O que quer é o alívio de olhar para um quadro e sentir que conseguiu. “Aquilo que tava aqui, agora tá ali. Pfffffff” (Respira aliviado). Diz que este é seu vício como artista. Técnica, materiais, já domina quase tudo. Mesmo assim, sente que está atrasado. ”O que eu realmente preciso, tá aqui dentro. E aí é a busca agora.” Nandinho explica que há momentos em que anda na técnica e momentos que anda com a mente, e sente que agora tem andado mais mente. Lidar com tanta emoção é complexo.

“Pintar é muito forte, sabe? Às vezes o cara chora, viaja nos pensamentos bons, ruins, vai… E tem que lidar com isso. É doido. É emocionante, sabe? É uma loucura. É incrível. A viagem pra tudo que é lado, assim, passado, presente, futuro, espaço, tudo… sabe?”

Acho que sei. Tento saber. Mas a realidade é que poucos sabem porque para se permitir acessar sentimentos de forma tão direta assim é preciso muita, muita coragem. Essa coragem, provavelmente, Nandinho encontra na companhia da legião que desenha. Os rostinhos que o acompanham desde antes de saber ler e escrever. Estas tantas cabeças. Porque Nandinho pensa. Muito. Dormindo, acordado. “Às vezes é muito difícil desligar. Tô sempre pensando no que que eu vou fazer, o que que eu vou pintar…aaaahhhhh”. Pensa tanto ou mais quanto a quantidade de cabeças que consegue fazer seriam capazes de pensar.

LADO DE FORA

Aí, poxa, inevitável a preocupação, inclusive da família. “O que que tu vai ser, né, um artista? Artista surfista?! “Mas o tempo foi… Ter ficado ali tentando, amando fazer isso…” Nandinho sempre teve espaço de expressão. “Meus pais sempre confiaram em mim.” Aos 11, por exemplo, quando resolveu morar sozinho no Matadeiro, eles deixaram. Era onde estavam as coisas que ele mais amava. Surf, os amigos, o lugar. Passou dias lá comendo pão com queijo e pegando ônibus para ir à escola. Tudo certo. Menino responsável. O queijo estava meio estranho, mas tudo bem. A mãe resolveu passar para ver o que se passava, e descobriu que o queijo, na verdade, era massa de pastel. E assim foi. Aos 15 viajou sozinho para a Indonésia. Aos 16 para o México, onde tudo mudou. Do encontro com a vida que sonhava, ao ombro deslocado até a descoberta da arte como seu verdadeiro caminho dentro do surf, o tempo foi fazendo seu trabalho para responder quem se preocupava com ele.

Um dia o padre, quando descobriu que Nandinho era neto do seu avô, pediu que Seu Nelson intercedesse pela pintura de um Santo Antônio. Situações assim, diz ele, “foram mostrando que não era só o dinheiro que dava valor a alguém.” Depois de um tempo, começou a vender uns quadros caros. “Consegui uns feitos que espero fazer de novo. Seria bom.” Pintando pranchas, nunca ganhou dinheiro para se sustentar. Sempre foi mais por diversão de entrar no mar e ver a galera surfando com a prancha pintada, colorir o mar, colorir o surf. “Essa sempre foi a minha intenção.” Era dali também, da pintura de pranchas, que acabava vindo todo seu estudo, porque ali arriscava mais. Mas se hoje pode dizer que seu trabalho extrapolou a bolha do surf e que já não depende dele para fazer seu sustento, é porque passou anos trabalhando como uma impressora de si mesmo dia após dia indo por todos os cantos com malinha de tintas e prancha se dedicando incessantemente a fazer aquilo em que sua mente estava focada: seu sonho.

“A fé, não sei, a energia, acho que leva a gente até aonde a gente quiser, né? Todo dia da minha vida, não sei durante quantos anos eu surfei e pintei todo dia, todo dia, toda hora. Eu pintei 10 pranchas, 15 por dia.”

Como uma máquina, não parava. “Ia para o Norte da Ilha, para o Sul da Ilha, por Santa Catarina, por São Paulo, foda-se o dinheiro, só vai, vai, vai. Onde me chamava, eu fui levando. Eu plantei semente em muito lugar.” Nandinho ia para as festas e levava caneta, começava a tatuar a galera. “Acho que já pintei umas 500 pessoas numa noite. De fazer fila, brigarem na fila, ‘não, calma’, de acabar a caneta e falar, ‘meu Deus, se eu não pintar essa galera, vão me linchar aqui’.” Como Nandinho é um cara difícil de não gostar, a rede de amigos sempre foi grande e ele nunca parava. De segunda a segunda. “Terça-feira, lá na Barra, alguém queria pintar a prancha e fazer festa. Era lá que eu ia.” Pintava uma, aparecia outra, no final pintava cinco pranchas. Dali emendava outro lugar no outro dia, e assim seguia. “Sem brincar, todo dia eu pintava cinco pranchas, uma tela e algum lugar, parede, muro, capa de prancha”. Acredita que foi esse movimento frenético que disseminou sua arte. “Eu gostava disso. Desse caos mental, todo dia forçando a mente ao extremo. Pinta, risca ali, e quando chegava no final, falava: ‘pintei tudo isso hoje’.”

A PORTA

Hoje em dia reconhece o quanto aquilo foi estressante. Não consegue, e provavelmente não quer, mais isso. Gosta de parar, pensar… Estudar o que quer fazer. “Com o tempo, não sei, minha mente foi adoecendo de tanta informação.” Nandinho sempre soube o poder que a mente tem. Mas nunca tinha a reconhecido pelo ângulo da sua face obscura. “Pode fazer tudo. Pode morrer. Pode fazer voar. Sei lá, tudo o que tu quiser.” Enquanto “todo o conhecimento necessário está na natureza pura”, acredita. É por isso que além de tintas, canetas e telas, Nandinho gosta de pintar com a própria natureza. Já fez com mel, e as formigas vieram. Um rostinho feito delas. Também com fogo, com a chuva. Um de seus quadros foi finalizado pelas gotas caindo, inesperadamente.

“Tô sempre tentando fazer parte da natureza. Ahhh… Sou da natureza. Minha busca é cada vez maior me tornar natureza. Fazer parte dela, assim. Não usar ela, né? Sei lá, tipo… Ser amigo dela, assim. Tá no círculo dela.”

Talvez por isso também se faça tão presente, especialmente nas cabeças e rostinhos, sua “parceria”, a expressão física quase sempre de uma mulher. Não sempre. Mas é isso. Tem muito desse lado feminino. Essa sua relação com a natureza é tão transversal que em nenhum momento, em nenhum desenho, em nenhum ponto ou risco de sua arte jamais saiu alguma expressão óbvia do surf, como uma onda desenhada em uma tela, por exemplo. O motivo?

“Eu nunca vou chegar perto da beleza da natureza, então eu nem perco meu tempo. A minha ideia é expressar, sei lá, com o mínimo possível, assim, de uma forma que seja… Que eu mesmo tô descobrindo isso, sabe?” Sente-se só uma ferramenta que consegue pegar uma energia para expressar.

Acho que o ser humano meio que sai um pouco do ecossistema, e o que quer é saber da Terra, do que o universo quer. Não o que querem no YouTube, no Instagram.

Talvez por isso hoje seja até difícil comprar um quadro seu. É preciso insistir no inbox do @alucinandinho. Precisa melhorar nisso, ele admite. Mas reconhece também que a insistência ali não deixa de ser um filtro contra a mera curiosidade. A rebeldia faz parte da energia punk rock que cultua. É assim que também acredita no surf, como essência em atitude de contracultura… …como quando poucas vezes o dinheiro definiu o que queria fazer. Ou quando escolheu uma antiga professora do colégio que dizia que ele não seria nada na vida para ocupar um cargo subordinado na exposição de suas obras na Assembleia só para poder ouvi-la falar: “Caramba, eu nunca imaginei!”. Ou ainda quando escolhia se esforçar mais para incomodar.

Quando descobriu que a arte veio para causar e que o desconforto é um ótimo caminho, ser chamado de aberração até chegou a ser um elogio. “Antigamente era mais fácil.” Pintava a unha, andava com a roupa toda pintada, já causava. É o seu jeito. Hoje em dia, em que o cotidiano das pessoas já tem sido incômodo suficiente, ser chamado de aberração e ver alguém puxando a criança pra longe já não tem graça nenhuma. Com o tempo, percebe quanta coisa carrega e como pode se cuidar mais. Nandinho acredita no universo, confia no universo, confia no seu caminho.

“O surf eu consumo, eu vivo. Minha alma ama isso. A arte é maior que eu.”

Publicado originalmente na edição impressa nº 01 da revista Flamboiar. Para saber mais, clique aqui.