“Surfista fascista?” Com esse título, o artigo publicado no dia 8 de janeiro pela escritora Tati Bernardi em sua coluna na Folha de S. Paulo promoveu uma pequena convulsão nas vielas virtuais das redes sociais por onde se cruzam os mais variados perfis e gerações de surfistas. Apesar do título, o artigo não se fixava somente no surf, mas também em outras áreas nas quais a autora encontra contradições entre o princípio da atividade em si e os princípios defendidos pelo atual presidente da República. Assim, ela questiona, ao longo do texto, como pode um surfista (“insurgente e livre”), um jogador de futebol (“inspirador de garotos pobres”) e um clínico geral (“defensor da vida”) serem apoiadores de Jair Bolsonaro.
O artigo em si não aprofunda muita coisa, visto que qualquer um destes microcosmos contém em si uma representação da própria sociedade como um todo. Não são bolhas isoladas do que acontece ao seu redor. Por isso, Junior Faria, Carol Bridi e Rapha Tognini resolveram buscar os motivos pelos quais a constatação de que existem sufistas de posicionamento extremamente conservador ainda causa espanto. Como a resposta passa pela compreensão do surf como uma das manifestações da contracultura em tempos passados, este episódio do Surf de Mesa se dedica a perguntar, e tentar responder: O surf ainda é contracultura?
Surf como contracultura
Houve um período em que o surf representou parte do movimento contracultural. Foi, na realidade, uma das manifestações culturais e sociais que se encaixaram no movimento contracultural que aconteceu durante um período da história moderna. Mas, vale lembrar que o surf não teve sua origem entre as décadas de 1960 e 1970, época marcada pelas manifestações sociais de contracultura em todas as suas vertentes, incluindo música, arte e outras formas de expressão.
Temos infinitamente mais registros do que aconteceu na era moderna e do que estamos vivendo na era pós-moderna do surf. Mas o surf em si é uma atividade milenar. Temos fresca na memória a atualidade, mas ele é parte da natureza humana em diversas culturas de diversas épocas ao longo da história da humanidade.
O surf começou a se tornar popular mundialmente a partir de Gidget, uma série de TV americana veiculada na década de 60 e inspirada em um livro da década de 50, que traduzia o surf como algo pop transgressor.
Naquele momento, transgressor, porém, sob controle. De repente, surge o contexto Flower Power x Guerra do Vietnã. Você quer amor ou você quer guerra? Você quer surfar ou você quer lutar no Vietnã? O ato de se negar ao que esperavam moralmente do cidadão da época é que era contracultural, e não o surf em si.
A contracultura no surf, portanto, está localizada no tempo e espaço em que a atividade se inseriu naquele contexto específico. Em determinado momento histórico, o simples ato de se dispor a pegar onda passa a ser visto como contestador à moral vigente. Mas existe toda uma cultura que precede esse período e que carrega uma história muito mais rica e duradoura do que o surf moderno.
Surf como cultura
Como surf moderno, estamos falando do começo do século passado. Trata-se de algo muito recente quando comparado aos moradores da Polinésia de pelo menos 1.500 anos atrás, que praticavam o surf como parte integrante da sociedade local. Era uma cultura totalmente absorvida em diversos aspectos, passando por religião, economia, diversão e ócio.
O surf moderno se resume a décadas, enquanto a história do surf é milenar. Analisando dessa forma, o surf foi muito mais tempo a cultura em si do que a contracultura.
A contracultura que tomamos conhecimento, portanto, é aquela que surge após a industrialização do surf e que foi extremamente localizado em um período recente da história. A partir do momento em que a atividade passa a ser aceita massivamente como esporte que promove heróis nacionais admirados pelas mais diversas camadas da sociedade, o que temos não é mais transgressão.
Quando um pai aprova e até incentiva que a atividade seja exercida pelo filho, a contracultura passa longe dela. Choque entre gerações talvez seja o sintoma mais visível para definir o que transgride ou não a cultura vigente. E no momento atual, o surf, definitivamente, não é algo que precisa ser feito escondido dos pais.
Não existe dentro do ambiente esportivo um aval mais institucionlizado do que fazer parte dos Jogos Olímpicos. A quantidade de etapas necessárias para chegar nesse nível e ser aceito pela maior entidade esportiva define a modalidade como perfeitamente aceita por todas as regras morais e de funcionamento da sociedade vigente. E aqui cabe destacar que o surf não virou um esporte olímpico de repente. Existiu um desejo, um planejamento e um projeto colocado em prática com este fim durante um longo tempo. Era uma vontade da International Surfing Association (ISA) praticamente desde sua fundação, na década de 60.
Esporte ou estilo de vida
Entra nessa briga ideológica pela dita essência do surf a ideia de que surf não é um esporte, mas sim um estilo de vida. Mas quem, hoje em dia, sendo atacado a cada segundo por milhares de estímulos e informações, consegue viver fielmente um único estilo de vida? Se na década de 70 pessoas abriam mão de tudo e saíam com suas pranchas para explorar e descobrir novas ondas, e no caminho começavam a produzir itens essenciais para a prática do surf que depois viravam marcas e negócios bem sucedidos, hoje em dia esse oceano já não está mais tão azul. Quando nada mais é inacessível globalmente, pouco se pode criar de novo que permita uma trajetória de caminhos abertos para sustentar um estilo de vida dedicado apenas ao surf.
Aqui cabe ainda o quanto se subestima o poder do dinheiro na construção da imagem desse estilo de vida. Trata-se de uma vida muito pautada por quem pode fazer. É romântico largar tudo e ir mora no Hawaii em frente à praia, mas há real noção de quanto isso custa? No North Shore das décadas de 60 e 70, era permitido fazer uma barraquinha no meio do mato em frente à praia. Tente fazer isso hoje e sairá preso e deportado.
A contracultura hoje
Não existe contracultura ao cair no mar com uma bermuda de marca australiana produzida na Tailândia e licenciada no Brasil, ou ainda com uma prancha americana produzida nacionalmente. São multinacionais. Existem pessoas ganhando royalties sobre o que você está usando para realizar sua suposta expressão de contracultura.
Por isso, analisar do ponto de vista histórico e considerar o período em que se está vivendo é tão importante para responder se surf ainda é contracultura. Depende sim da forma como cada um trata o próprio surf, mas, sem ilusões, a atividade em si, no momento histórico em que vivemos, não é mais contracultura há algum tempo, visto que se transformou em uma atividade plenamente aceita pela sociedade.
Mas, hoje em dia, num momento em que a cultura é tão múltipla, o que exatamente é contracultura? Talvez seja raciocinar sobre tudo que está te influenciando para, assim, fazer escolhas com consciência própria.
Contracultura hoje pode ser pensar por si só. Resistir à influência.
Nesse sentido, é perfeitamente possível ter uma postura contracultural e estar inserido no meio do surf (agora aceito massivamente), agindo de forma a provocar algum conflito a partir daquilo que você não concorda. Mas, tente lembrar que contracultura nunca foi feita por nota de repúdio. Então, se você surfa e tem o sentimento de contracultura dentro de você, faça a sua parte. Individualmente, você pode se colocar de forma diferente mesmo dentro de um contexto agora encaixado no status quo.
Hoje, toda a sociedade está representada dentro da água. E isso só acontece quando algo se torna grande o suficiente para ser um reflexo do todo. Se há fascistas na sociedade, e o surf é um microcosmo da sociedade, óbvio que também há surfistas fascistas. Seja pelo conservadorismo em si ou por pura ignorância (geralmente causada pela falta de acesso à educação, tão característica dos país onde a desigualdade prevalece).
Fato é que tudo fica muito perigoso quando se opta por tratar o surf como uma bolha onde tudo é perfeito. Ele está inserido num contexto ao qual é incapaz de sair isento.
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