Quando você pretende parar de surfar? Duvido que você já tenha se feito essa pergunta porque ninguém planeja parar de pegar onda. A questão é: o que você tem feito não só para se prevenir como para estar preparado para uma longa vida útil no surf? Se você quer chegar aos 70, 80 anos de vida deslizando sobre uma prancha, uma hora ou outra vai precisar se preocupar com algumas coisas além da próxima prancha que vai te acompanhar. E quanto mais cedo, melhor. Afinal, não há equipamento mais fundamental para seguir pegando onda do que o próprio corpo.

Por isso, neste episódio do Surf de Mesa, Junior Faria, Carolina Bridi e Raphael Tognini conversaram Guilherme Vieira Lima, o Guiga, médico do esporte atuante na área da medicina do surf, membro da Surfing Medicine International e fundador do app Surf Injury Data.

O que é medicina do surf?

Quando se fala em medicina do surf, é natural pensar em performance de atleta. A realidade é muito mais ampla do que isso. Guiga explica que ela surge, de fato, do outro lado. A partir da percepção sobre o surfista comum, vai-se refinando até chegar ao surfista de alta performance. Medicina do surf não se trata de uma disciplina em si, mas sim de várias especialidades que têm em comum o foco no esporte e no seu estilo de vida. Ou seja, a medicina do surf nasceu da necessidade de um suporte adequado para o surfista poder surfar mais e melhor. É fácil cair na obsessão da performance. Mas pouco se percebe que ninguém consegue performar se a saúde não estiver bem, se não dormir bem, se não se alimentar bem. É desta consciência que vem a medicina do surf.

Imagine a foto de um surfista entubando em Mentawai. E agora se pergunte: Nesta imagem, onde está a medicina do surf? Forçado a pensar em algo além da felicidade do sujeito, o mais natural seria identificarmos a medicina no atendimento que o surfista pode vir a precisar se sofrer algum trauma físico ao tomar uma vaca. Mas a realidade é que, neste quadro, a medicina é onipresente. Exatamente tudo naquele ambiente necessita de algum suporte relacionado à saúde.

“A medicina do surf começa na hora em que você acorda para ir surfar”, diz. Na noite anterior você jantou e dormiu. Acordou de barriga vazia e foi fazer uma atividade física intensa por uma hora e meia ou duas horas. O que você deve comer? A medicina do surf já começa aí, na mais básica das decisões. “E ela se desenvolve à medida da rotina que um surfista tem, que é diferente de qualquer outra atividade esportiva”, explica.

Mais do que ficar em pé na prancha

Isso significa que o assunto que está no seu dia a dia sem sequer você se dar conta. Volte à imagem do surfista entubando em Mentawai e pense em tudo que está envolvido para chegar aos segundos em que ele fica em pé sobre a prancha. O surfista está exposto ao sol, ao sal e às doenças endêmicas do local. Ele está exigindo um preparo físico para extrair o máximo daquele momento que, não raras vezes, é a realização de um sonho. “Houve um preparo ou aquele surfista ficou sem surfar seis meses e fez a viagem de um mês achando que vai quebrar todos os dias? Na verdade, pode ficar quebrado no segundo dia”, brinca.

E não precisamos ir até Mentawai. Na queda de dia a dia, a medicina do surf está tão presente quanto na trip dos sonhos, ou até mais. Outro bom exemplo é o retorno ao surf após a flexibilização das medidas de isolamento. Passaram-se três meses em que a maioria de nós parou ou diminuiu consideravelmente a prática do surf ou de atividades físicas. Desde então, o nível de movimentação física diminuiu radicalmente. Quem tinha um ritmo forte de esporte e treinamento, seja amador ou profissional, tendo a se considerar apto para voltar à intensidade. É fundamental, porém, lembrar que o período de parada tem um forte impacto capaz de resultar facilmente em lesões.

Volta ao surf

Com o agravante de que agora é a pior hora de se machucar devido à sobrecarga no sistema de saúde, existe o fato de que no retorno à atividade o corpo está mais propenso a sofrer qualquer problema. “Tem o aspecto do corpo humano como um todo: cardiovascular, respiratório, músculo-esquelético. Então, obviamente a sua performance, o seu reflexo e a propriocepção caem muito”, avisa. Duas semanas sem surfar, quatro semanas sem atividade física já diminuem muito a capacidade aeróbica. E quanto maior a idade, mais rápida é essa perda. No surf, isso é ainda mais exacerbado porque geralmente não há descanso e há uma grande desidratação.

Guiga observa que a diminuição da capacidade cardiopulmonar leva a um reflexo menor. Tendo um reflexo menor, é fácil se posicionar de forma errada durante as manobras. Isso, naturalmente, eleva consideravelmente as chances de lesão. Entorces de joelho ou de tornozelo, por exemplo, tornam-se muito mais frequentes nestas condições. Também em relação a parte muscular, há uma fadiga muito mais rápida. De duas a quatro semanas sem atividade já proporciona uma troca das fibras de ação rápida por fibras de ação lenta. Com isso, não se tem mais a mesma força de remada e, entrando no timing errado da onda, também crescem as chances de lesão.

O surf exige um refinamento técnico muito grande, e é comum que as pessoas pensem que podem compensar este esforço na parte física, a qual fica relegada a segundo plano. Parado, seu corpo vai se transformando diariamente. Então, seja pelas medidas de isolamento ou pela impossibilidade de estar no mar frequentemente, é fundamental levar estas informações à consciência.

Surf e as outras modalidades

“A cultura tem mudado nos últimos tempos, com uma visão do surfista como atleta”, observa Guiga. Independente de opiniões contra ou a favor, ele constata que, principalmente ao ser percebido como esporte olímpico, surgem preocupações que antes eram ignoradas, como ter um preparo cardiovascular, alimentação adequada, qualidade de sono e disciplina de horários, por exemplo. Se antigamente isso não era realidade nem para quem era competidor, hoje em dia as novas gerações já entram na prática com a mentalidade de ter um nutricionista, um preparador físico, etc. “Essa é a evolução natural de qualquer esporte”, acrescenta, sem deixar de se questionar sobre o impacto psicológico que isso também pode vir a ter sobre os novos surfistas. Afinal, não é raro perceber uma pressão bastante precoce para se tornar o próximo fenômeno brasileiro sobre algo que deve ser, antes de qualquer coisa, um prazer.

Guiga tem estudado as características que tornam a medicina do surf bastante única quando comparada à medicina esportiva em geral. Ele costumo separar a medicina do surf em alguns blocos que permitem um melhor entendimento da necessidade do paciente. O primeiro é a exposição a fatores ambientais. O segundo é a traumatologia. O terceiro é a ortopédica, ou seja, as dores que a prática pode causar. E o quarto é a performance, que envolve preparo cardiopulmonar, nutricional, força e tudo que está envolvido no treino. “É uma forma de separar os temas da medicina do surf para conseguir ter uma abordagem melhor para cada paciente”, explica.

Surf e as outras modalidades

O que difere muito o surf das outras modalidades é a imprevisibilidade envolvida nos fatores em que o surf se desenvolve. “A medicina gosta de colocar regras e padrões, e o que quero desmistificar é que não existe padrão no surf. É da pessoa, do local e do momento. É extremamente dinâmico”, esclarece. Isso, segundo ele, é o mais interessante na medicina do surf e no surf em si. “O charme do surf é a imprevisibilidade encontrada em uma fração de segundos. E é esta mesma imprevisibilidade que torna a abordagem da saúde no surf também tão especial. É por isso e para isso, inclusive, que a medicina do surf está se estruturando. É o que o Brasil precisa, segundo Guiga, já que por aqui existe uma população muito grande de surfistas.

Da extensão do país fica evidente algo bastante notável na medicina do surf – os fatores de regionalidade que impactam nos tipos de ocorrências. Um bom exemplo é a Exostose, ou Ouvido de Surfista. Por ser uma lesão associada a água gelada e vento, é muito típica das regiões com baixas temperaturas, onde se torna comum o uso protetores de ouvido. É justamente a regionalidade um dos pontos a que se dedica o app Surf Injury Data, desenvolvido por ele em parceria com os médicos Marcelo Baboghluian e Pedro Luiz Guimarãoes, também especialistas em medicina esportiva com dedicação ao surf.

Padrões regionais

Segundo Guiga, um dos grandes objetivos do app é construir uma base de dados que possa estabelecer padrões regionais no Brasil ao traçar um perfil populacional, espacial e da condição do momento. É um trabalho ainda inicial porque depende do compartilhamento de informações de surfistas de todos os cantos do Brasil. Até agora, há muitos registros de dor nas costas e no ombro, além de trauma na cabeça. Este último chama atenção, mas Guiga observa que pode ser reflexo do fato de um trauma na cabeça ser mais marcante, fazendo com que o surfista publique mais no app. Os dados devem se tornar mais refinados quanto mais informações os surfistas registrarem, mas ainda poucos têm o costume de registrar tudo que sentiu ou sofreu em cada sessão.

O perfil colaborativo do app é a base do objetivo tanto individual quanto coletivo. Além de criar uma visão individual para o surfista, mostrando, por exemplo, padrões anuais da própria prática, outra função é dar ao surfista a oportunidade de, ao surfar pela primeira vez em determinado pico, conhecer previamente o perfil do lugar e até se preparar para possíveis situações características por lá. Na função individual, portanto, quanto mais o surfista fizer registros, maior a fidelidade do gráfico individual, o que cria informações mais refinadas da própria prática. “Ele pode perceber, por exemplo, que nos últimos anos tem se machucando mais em determinado mês, o que permite buscar as causas”, comenta. Já o efeito colateral deste comportamento se traduz em mais dados coletivos, que tornam mais refinadas as informações para a construção de uma base sólida para a percepção dos padrões regionais.

Para ouvir a conversa completa sobre tudo que envolve a medicina do surf, dá o play e vem nessa:

 

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